Introdução
O uso de instrumentos de música nas reuniões das igrejas locais não é mencionado especificamente em nenhuma parte do Novo Testamento. Nas epístolas, temos referências a hinos sendo cantados (Cl 3:16 e Ef 5:19), mas o único acompanhamento mencionado é “com graça em vosso coração” (“graça” no sentido de uma virtude cristã, não no sentido de algo engraçado). Ou seja, o NT permanece em silêncio sobre esse assunto.
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Psallo no léxico de Thayer |
Por que este silêncio? Haveria alguma coisa intrinsecamente errada com o uso de instrumentos de música para adorar a Deus? Podemos ter certeza que não, pois no Velho Testamento lemos que Deus ordenou a Davi que usasse címbalos, saltérios e harpas na adoração do Templo (II Cr 29:25). E já que os apóstolos vieram do judaísmo, estariam acostumados a instrumentos musicais sendo usados para adorar a Deus. Certamente não haveria qualquer restrição moral ou cultural por parte dos apóstolos quanto a este assunto.
O que fazer, então, diante desse silêncio do NT, e do contraste com o VT? Para muitos, o silêncio não serve de guia. Eles seguem o que os teólogos chamam de princípio normativo da adoração, que defende que qualquer coisa que Deus não proibiu pode ser usada para adorá-Lo. Este princípio, segundo os teólogos, está em contraste com o princípio regulador da adoração, seguido pelas igrejas mais tradicionais da Reforma, que defende que Deus deve ser adorado somente nos termos que Ele explicitamente determinou.
Se cremos na suficiência das Escrituras (II Tm 3:16-17), não estaremos preocupados excessivamente com os princípios da teologia, mas procuraremos em Atos e nas epístolas do NT algum preceito, ou precedente, ou princípio que possa nos orientar nesse assunto.
Preceito direto não há. Como já enfatizei, há instruções sobre cantar hinos (composições baseadas nas Escrituras), salmos (aqueles que compõem o livro de Salmos) ou cânticos espirituais (composições sobre a vida cristã), acompanhados de graça no coração. Mas não há nenhuma instrução sobre outros tipos de acompanhamento, nem a favor, nem contra.
Precedentes também não há. Apesar dos apóstolos estarem acostumados com instrumentos musicais na adoração do Templo, nunca lemos deles ou qualquer outro cristão usando instrumentos musicais nas reuniões das igrejas locais.
Mas há princípios que nos ajudam em relação a este assunto. Um deles é aquilo que II Coríntios 11:3 chama “a simplicidade devida a Cristo”. A adoração na velha aliança era toda direcionada aos sentidos: prédios com muito ouro (tabernáculo e Templo), uma classe especial de sacerdotes com vestimentas especiais e requintadas, sacrifícios, incenso, e música. Naqueles tempos de conhecimento parcial, quando a obra redentora de Cristo ainda não havia sido revelada na sua plenitude, Deus falava ao seu povo usando essas coisas materiais. Mas a ênfase na nova aliança é naquilo que é espiritual é invisível. O Templo, os sacerdotes e os sacrifícios deram lugar à “simplicidade devida a Cristo”.
Também devemos pensar na questão dos dons espirituais. Não devemos valorizar nas igrejas locais dons naturais, mas sim dons espirituais. Para a adoração do Templo seriam escolhidos levitas com os dons naturais relacionados a música, seja tocada ou cantada. Mas o que precisamos hoje para servir a Deus são os dons espirituais.
Olhando deste ponto de vista, temos uma explicação coerente para a diferença entre o Velho e o Novo Testamento quanto ao assunto de instrumentos musicais. Na Velha Aliança, instrumentos de música tinham seu lugar, pois a adoração era dirigida ao sentidos; na nova aliança porém, eles não têm lugar algum nessa forma de adoração caracterizada pela simplicidade.
Psallo
Muitos hoje em dia tem questionado este ensino baseados no significado original da palavra grega psallo (traduzida “salmos”). É afirmado que esta palavra quer dizer “tocar um instrumento musical”, e que o uso desta palavra no Novo Testamento nos autoriza a usar instrumentos de música nas reuniões das igrejas locais hoje.
Mas não é bem assim! Se quisermos recorrer ao significado das palavras originais, precisamos lembrar que palavras mudam de significado com o passar do tempo.
Um exemplo clássico disto é a palavra inglesa “gay”, que na minha infância significava simplesmente “alegre, jovial”, mas que hoje tem uma conotação bem diferente. Ao encontrar essa palavra num texto em inglês, é fundamental entender o tempo em que aquele texto foi escrito para entender o significado da palavra naquele texto.
A palavra grega psallo também mudou de significado com o passar do tempo, e os principais léxicos concordam nisto. O léxico de Thayer diz (cito a sua obra original, não a versão resumida que está presente em muitas Bíblias eletrônicas hoje em dia — negrito meu):
Psallo (derivado de psao, esfregar, limpar; manusear, tocar); a) arrancar, arrancar o cabelo; b) fazer vibrar ao tocar, vibrar: especificamente, tocar ou golpear uma corda, tanger as cordas de um instrumento musical de modo que vibrem suavemente; e, portanto, tocar um instrumento de cordas, tocar harpa, etc.; cantar ao som da harpa; no NT, cantar um hino, celebrar os louvores de Deus em canções (Tg 5:13), em honra de Deus (Ef 5:19; Rm 15:9; “Cantarei louvores a Deus, de fato, com toda a minha alma animada e levada pelo Espírito Santo, mas também seguirei a razão como meu guia, para que o que canto possa ser compreendido tanto por mim quanto pelos ouvintes”, I Co 14:15).
Psalmos, o ato de tocar, tanger; especificamente, tanger as cordas de um instrumento musical; portanto, uma canção piedosa, um salmo (Ef 5:19; Cl 3:16); a frase “tem salmos” é usada para designar alguém que tem em seu coração a intenção de cantar ou recitar uma canção desse tipo (I Co 26); uma das canções do livro do VT que se intitula Salmos (At 13:33); plural, o (livro de) Salmos (Lc 24:44; 20:42; At 1:20).
Eadie, ao comentar sobre Efésios 5:19, define psalmos assim:
… segundo sua origem [isto é, a raiz da palavra], um cântico sagrado cantado com acompanhamento de música instrumental … Essa ideia específica se perdeu com o tempo, e a palavra reteve apenas o sentido geral de uma composição poética sagrada, correspondendo ao hebraico מִזְמוֹר [Salmos]. Às vezes, denota o Livro dos Salmos (Lc 20:42; At 1:20, 13:33); e em um lugar significa a efusão improvisada de alguém que possuía alguns dos carismas, ou dons da igreja primitiva (I Co 14:14, 26).
W. E. Vine (autor do conhecido Dicionário Vine pubicado no Brasil pela CPAD) escreveu:
A palavra psallo primeiramente significava tocar um instrumento de cordas, ou cantar acompanhado de uma harpa. Mais tarde, e no Novo Testamento, veio a significar simplesmente louvar, sem ser acompanhado de um instrumento.
Ou seja, se quisermos resolver esta questão (o uso ou não de instrumentos de música nas reuniões das igrejas locais) apelando para a etimologia da palavra grega psallo, precisamos lembrar que os eruditos citados afirmam que, quando o NT foi escrito, psallo significava “cantar um hino” (Thayer); que o sentido de acompanhamento musical inicialmente presente na palavra, “se perdeu com o tempo, e a palavra reteve apenas o sentido geral de uma composição poética sagrada” (Eadie); e que, nos dias do NT, ela “veio a significar simplesmente louvar, sem ser acompanhado de um instrumento” (Vine).
Concluímos que a palavra psallo, nos dias do NT, não significava mais “hino com acompanhamento musical”, mas simplesmente indicava um dos hinos que compõem o livro de Salmos. Como escreveu R. E. Watterson:
As diversas versões do Novo Testamento em Português que possuímos confirmam este fato, pois os tradutores nunca traduziram psallo por tocar ou tanger.
Seguindo o contraste entre salmos, hinos e cânticos proposto por Strong na sua definição de “cânticos”, podemos parafrasear Colossenses 3:16 assim: “A palavra de Cristo habite em vós abundantemente, em toda a sabedoria, ensinando-vos e admoestando-vos uns aos outros, com salmos [um poema hebraico com métrica], hinos [um poema religioso com métrica] e cânticos [qualquer palavra cantada] espirituais, cantando ao Senhor com graça em vosso coração.”
Que possamos permanecer firmes na "simplicidade devida a Cristo"!
Bibliografia
EADIE, John. Greek Text Commentaries. Michigan, Baker Book House, 1883 (reimpresso 1979).
STRONG, James (1822-1894). Strong’s Exaustive Concordance of the Bible. Versão eletrônica (e-sword).
THAYER, Joseph Henry (1828-1901), GRIMM, Carl Ludwig Wilibald (1807-1891) e WILKE, Christian Gottlob (1786-1854). A Greek-English lexicon of the New Testament, being Grimm's Wilke's Clavis Novi Testamenti, tr., rev. and enl. by Joseph Henry Thayer. New York: 1889.
VINE, W. E. Vine’s Expository Dictionary of NT Words. London: Oliphants, 1940 (reimpresso 1948).
© 2022 W. J. Watterson
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