Friday 19 December 2014

Crianças e reuniões combinam?

Como fiz exatamente um mês atrás, quero abordar um assunto prático relacionado às reuniões das igrejas. Mas desta vez procurarei escrever sem o leve tom de brincadeira que usei da última vez, por pelo menos dois motivos:



  1. Primeiro, porque a criação de filhos no temor do Senhor é, possivelmente, a tarefa mais árdua e complexa que existe. Tentei criar três filhas, e reconheço que foi um processo recheado de erros e falhas. Cada criança tem a sua personalidade e seu temperamento, e não podemos tratá-las como robôs autômatos. A teoria sobre criação de filhos (para quem aceita a autoridade da Bíblia) é simples; mas aplicar esta teoria consistentemente, dia após dia, ano após ano, nas mais diversas situações e às mais variadas personalidades, é quase impossível de ser feito perfeitamente. Como qualquer pai ou mãe honesto, tenho que confessar: eu falhei na crianças das minhas filhas, e aprendi que esta é uma tarefa muito, muito difícil.
  2. Não só a tarefa de criar filhos é extremamente difícil, mas é também um assunto extremamente melindroso. Pessoas que aceitam serem corrigidos em outras áreas não suportam uma insinuação de que seus filhos estão sendo malcriados. Pais e mães que, antes de serem pais e mães, percebiam os menores defeitos nos filhos dos outros, tornam-se cegos aos erros grosseiros dos seus próprios filhos. Amamos tanto nossos filhos que, se alguém sugere que eles estão se comportando de forma errada, imediatamente começamos a defendê-los.

Reconheço minhas falhas como pai, e tenho consciência que tentar apontar algumas destas falhas pode irritar muitos pais e mães. Mas as recentes mudanças na sociedade tem se infiltrado no meio do povo de Deus, e estamos perdendo a noção da solenidade da presença de Deus nos ajuntamentos do Seu povo. Preocupado com isso, vou me arriscar a escrever, orando para que Deus permita que aqueles que se sentirem ofendidos me perdoem pela minha presunção.

Um aspecto da maneira como criamos nossos filhos e filhas é o comportamento que esperamos deles nas reuniões das igrejas locais. Uma reunião deve ser realizada num ambiente de ordem e solenidade, devido à presença do Senhor no nosso meio (veja I Coríntios cap. 14), mas não é natural que uma criança com poucos meses de vida se comporte com a reverência que a ocasião exige. Diante desta situação, o que devemos fazer? Há três sugestões:

  1. Não levar crianças pequenas às reuniões (pai e mãe podem se revezar no cuidado com os filhos);
  2. Não se preocupar com o comportamento das crianças nas reuniões (afinal, são apenas crianças);
  3. Levar as crianças às reuniões, mas exigir que elas se comportem como a ocasião exige.

Quanto à primeira sugestão, ela é largamente praticada em outros países, e entendo a motivação por trás dela. As reuniões transcorrem sem barulho, com reverência e solenidade, e este ambiente contagia a todos — a reverência geral produz reverência no indivíduo. Mas o custo espiritual para os pais, para as crianças, e para a igreja toda, é muito grande. Um casal poderá passar anos e anos sem ir às reuniões juntos, e tanto o pai quanto a mãe perderá muitas reuniões. As crianças passam seus primeiros quatro ou cinco anos sem o contato tão saudável com a igreja nas reuniões, sem a experiência de um ajuntamento solene na presença de Deus. E a igreja não pode contar com a participação plena dos pais nos primeiros anos de vida dos filhos (se um casal gera três filhos com intervalos de dois ou três anos, podem ficar mais de uma década nesta situação). Participei de muitas reuniões assim, e apesar de apreciar muito a reverência manifestada, não creio que seja o ideal.

A segunda sugestão (que corresponde à prática mais comum aqui no Brasil nos últimos anos) tem como principal vantagem promover a integração da família toda (pai, mãe e filhos) com a igreja local desde a mais tenra idade da criança. As reuniões da igreja farão parte das primeiras lembranças da criança quando crescer, e isto é ótimo. Mas o custo espiritual é enorme. Uma criança barulhenta pode tirar praticamente todo o proveito espiritual de uma reunião. Entre os salvos, alguns ficarão olhando e rindo das peripécias da criança, enquanto quem quer prestar atenção ficará irritado com as distrações — e todos irão ter o seu proveito espiritual prejudicado. Pior ainda é imaginar a situação de um incrédulo que esteja presente na reunião. Se lembrarmos que o destino eterno dele está em jogo, que trágico seria se Satanás conseguisse distrai-lo por causa do meu filho(a); quão horrendo se ele continuasse caminhando ao inferno por causa da complacência dos pais para com uma criança inocente!

Creio que a terceira sugestão é o caminho que devemos seguir. A reunião de uma igreja local é preciosa demais para que pais fiquem em casa com seus filhos, e é solene demais para que pais permitam que seus filhos perturbem a reunião. A única solução que resta é trazer os filhos às reuniões desde as primeiras semanas de vida, mas educá-los para que se comportem nas reuniões.

O mais difícil nesta questão é concordar sobre o que é um comportamento aceitável duma criança numa reunião. Quero sugerir algumas coisas, não como regras ou leis, mas como sugestões de quem já errou muito, e deseja que uma nova geração erre menos do que eu errei:

  1. Os primeiros meses de vida são os mais difíceis. Nesta fase, é normal a criança chorar quando tiver fome ou algum desconforto (cólica, fralda suja, etc.). A mãe pode sair com a criança sempre que surgir uma situação destas, resolver a situação, e voltar o mais rápido possível. Todos os demais devem entender que isto é normal naquela fase, e procurar não aumentar o problema olhando pra trás toda vez que a criança chora, etc.
  2. Depois de alguns meses, porém, a inteligência da criança começa a se manifestar, e ela já tem condições de ser ensinada que deve permanecer em silêncio nas reuniões. Os meios que os pais usarão para efetuar isto podem variar dependendo dos pais e da criança, mas já vivi o suficiente para poder afirmar que qualquer criança consegue aprender a ficar quieta numa reunião antes mesmo de aprender a andar e falar. “Você não conhece o meu filho!” alguém diz. É verdade, mas já vi crianças hiperativas que, na hora da reunião, sabem se comportar. É difícil de ser conseguido, mas é possível.
  3. Obviamente, isto começa em casa; uma criança que faz a sua própria vontade em casa não vai fazer a vontade dos pais na hora da reunião! O comportamento que se espera da criança em casa é bem diferente do que é permitido na reunião, mas em qualquer ambiente haverá limites que não podem ser ultrapassados. Se os pais não insistem, em casa, para que os limites da casa não sejam ultrapassados, não é na hora da reunião que vão conseguir que a criança os obedeça.
  4. Obviamente, também, não é algo que se consegue do dia para a noite, ou sem esforço; vai exigir muita paciência e perseverança dos pais. Não adianta nada deixar a criança gritar por meia hora, depois levá-la para fora e dar uma surra; uma leve repreensão, toda vez que a criança tenta fazer algum barulho, é muito mais eficaz. Passar a reunião toda do lado de fora distraindo a criança também não resolve a situação. O importante é não desanimar nem desistir.

Eu sei que crianças não são adultos. Sei também que ninguém consegue criar seu filho de forma perfeita. Se permitirmos que crianças frequentem as reuniões das igrejas, é inevitável que haverá interrupções devido ao mau comportamento das crianças. O que pretendo com este alerta não é envergonhar pais e mães cujas crianças já atrapalharam alguma reunião (pois todos nós somos culpados disto), muito menos defender uma utopia. Apenas creio que devemos nos esforçar ao máximo para que as interrupções sejam diminuídas o máximo possível.

Quero sugerir que pais “de primeira viagem” peçam conselhos e orientação dos mais experientes, e que todos os demais tenham paciência com os pais enquanto educam seus filhos. Vocês que são pais de crianças pequenas: tenha certeza que eu entendo o quão difícil é a tarefa que vocês tem, e oro para que vocês sejam zelosos neste serviço. A vocês que não são pais de crianças pequenas: tenha paciência, e não torne o trabalho dos pais ainda mais difícil do que já é.

A maneira como o mundo cria seus filhos não é aceitável para o cristão. Crianças pequenas conseguem aprender a ficar quietas nas reuniões. Elas tem inteligência suficiente para aprender, e com certeza não ficarão traumatizadas se forem ensinadas a ficarem quietas duas ou três horas por semana.

Se alguém acha que exagerei, pode me corrigir nos comentários. Se alguém tiver alguma experiência pessoal para ajudar neste sentido, tenha liberdade de compartilhar.

“Educa a criança no caminho em que deve andar; e até quando envelhecer não se desviará dele … A estultícia está ligada ao coração da criança, mas a vara da correção a afugentará dela … Não retires a disciplina da criança; pois se a fustigares com a vara, nem por isso morrerá … A vara e a repreensão dão sabedoria, mas a criança entregue a si mesma, envergonha a sua mãe.” (Provérbios 22:6, 15; 23:13; 29:15).

© W. J. Watterson

Monday 24 November 2014

A galeria dos heróis da fé

A maioria dos leitores deste blog conhece bem a lista dos homens e mulheres de fé, em Hebreus 11. Mas muitos não percebem que a lista não é simplesmente uma coleção aleatória de nomes, mas uma exposição perfeitamente equilibrada e simétrica de atos de fé.

Se seguirmos o uso da pequena expressão “pela fé” neste capítulo, veremos que ela é usada dezessete vezes em relação a um evento ou pessoa específica. Não aleatoriamente, mas em perfeita simetria: a lista começa com três santos antediluvianos (Abel, Enoque e Noé), depois continua com quatro cenas da vida de Abraão (o quarto personagem mencionado). Depois temos mais três referências individuais (Isaque, Jacó e José), seguidas de mais quatro cenas da vida do quarto, Moisés. Encerrando a lista, há outros três eventos individuais da história de Israel.


O equilíbrio perfeito, e a simetria, desta coleção de pessoas e eventos são dignos de nota, e nos ajudam a descobrir lições para nosso proveito espiritual.

Ambas as ilustrações que acompanham este texto (que diferem uma da outra somente nas cores utilizadas) podem ser baixadas para impressão em alta definição no formato A3 (faça o download da tabela escura ou da tabela clara).

Convém destacar que as ilustrações somente se preocupam com expressões que seguem a fórmula “Pela fé alguém fez algo”. Outros seis nomes são mencionados no v. 32, mas eles seguem um padrão diferente dos nomes que foram destacados aqui.


© W. J. Watterson

Faith’s “Hall of Fame”


Most readers of this blog will be familiar with the list of men and women of faith in Hebrews 11. But many fail to notice that the list is not simply a haphazard collection of names, but a perfectly balanced, symmetrical exposition of acts of faith.

If we follow the use of the little expression “by faith” in the chapter, we will find it used seventeen times in relation to a specific person or event. Not haphazardly, but in perfect symmetry: the list begins with three antediluvian saints (Abel, Enoch and Noah), followed by four scenes from Abraham’s life (the fourth character named). Next come three more individual references (Isaac, Jacob and Joseph), then another four scenes from the life of the fourth (Moses). Closing the list, we have another three individual events in Israel’s history.

The perfect balance and symmetry of this collection of people and events is worth noticing, and will help us to discover lessons for our spiritual benefit.

Both of the illustrations that accompany this post (they only differ in the colour scheme used) can be downloaded in high definition for printing on an A3 sheet of paper (download dark coloured chart or light coloured chart).

Note that the illustrations only list occurrences of expressions that follow the formula “By faith someone did something”. Six other names are mentioned in v. 32, but they follow a different pattern to the ones highlighted here.


© W. J. Watterson

Saturday 22 November 2014

Man of war and man of rest

David and his son Solomon and described in very different manners. Someone said of David: “A mighty valiant man, and a man of war” (I Sm 16:18), while the Lord Himself said of Solomon: “Behold, a son shall be born to thee, who shall be a man of rest; and I will give him rest from all his enemies round about” (I Ch 22:9). In these two men we have an illustration of our Lord Jesus Christ in two different periods: at the end of the Tribulation (David) and in the Millennium (Solomon).

David, the man of war who freed Israel from all her enemies, reminds us of the Lord Jesus as the one who on the cross, “having spoilt principalities and powers … made a show of them openly, triumphing over them” (Col 2:15), and the one who, at the end of the Tribulation, will be manifested as one who “in righteousness doth judge and make war … And out of His mouth goeth a sharp sword, that with it He should smite the nations” (Rev 19:11-16).

Solomon, the man of rest who received a kingdom without enemies, where peace and justice reigned, reminds us of the Lord Jesus and the kingdom of peace and rest that He will establish on Earth during the Millennium, when “the work of righteousness shall be peace, and the effect of righteousness quietness and assurance for ever. And My people shall dwell in a peaceable habitation, and in sure dwellings, and in quiet resting places” (Isa 32:17-18).

Having received deliverance from our enemies by the greatest Man of war, we await a kingdom of peace and rest under the authority of the greatest Man of rest. To Him be all glory!

© W. J. Watterson

Wednesday 19 November 2014

Tempestade em copo d'água

Poucos dias atrás, numa conferência com cerca de duzentas e cinquenta pessoas, fiquei assustado e preocupado com algo que parece tão simples e inofensivo: água!



Antes de explicar melhor, permita-me enfatizar que escrevo com um sorriso nos lábios (não é necessário levar ao pé da letra tudo que você encontrará nesta página). Ao mesmo tempo, não é tudo uma brincadeira (existe realmente um motivo para preocupação).

A conferência foi, na minha opinião, excelente. Ver tantas pessoas reunidas para ouvir a palavra de Deus numa tarde quente foi animador. As mensagens engrandeceram o Senhor Jesus Cristo, o que alegra qualquer cristão que ama ao Senhor. Mas a reunião teve um aspecto menos nobre: um constante vai-vem de pessoas atrás de água! Eu sei que algumas daquelas pessoas precisam beber com intervalos curtos (por motivos de saúde, por estarem com crianças de colo, etc.), mas é difícil acreditar que todo mundo ali estava numa situação destas. Será que, em casa e no serviço, bebem água com a mesma frequência? Será que não percebem que toda vez que levantam distraem a si mesmos e mais uma dúzia de pessoas?

Vou direto ao ponto: a geração de hoje não suporta nenhum desconforto. Ficar sentado por cinquenta minutos (ou menos!) para ouvir uma mensagem torna-se um fardo impossível de ser suportado. Ao menor sinal de sede, a primeira reação não é: “Vou aguentar um pouco, pois estou aqui para ouvir a Palavra de Deus; não quero ser distraído, e não quero distrair ninguém”, mas sim: “Estou com sede, e isto é o que importa agora. Se eu perder um pouco da mensagem, ou se tirar a concentração do pregador ou daqueles ao meu redor, paciência; eu estou com sede! Se não beber agora, vou ficar traumatizado por causa desta sensação horrível de secura na língua!”

Eu sei que, no calor deste nosso Brasil, a sede pode incomodar. Reconheço também que muitos pregadores, bebendo água toda hora, só fazem aumentar nossa sede (o efeito psicológico é notório). Mas se todos nós nos esforçássemos para suportar um pouco de sede (“sede”, não; “uma leve vontade de beber água”) por um pouco de tempo, nosso aproveitamento nas reuniões do povo de Deus seria muito melhor, e todos seríamos beneficiados.

Sei que alguns vão achar que estou fazendo tempestade por um copo d'água; creio, porém, que são os copos d'água que criam ondas de desatenção nas reuniões. Algo pequeno, reconheço; mas justamente por ser tão insignificante, é tão simples de ser corrigido!


© W. J. Watterson

Tuesday 4 November 2014

Acróstico (i)

Da série “Figuras de linguagem na Bíblia”. Leia também:


A palavra “acróstico” pode ser definida como “composição poética em que cada verso principia por uma das letras da palavra que lhe serve de tema.” Uma forma específica de acróstico é o acróstico alfabético, em que cada verso inicia com uma das letras do alfabeto, na ordem alfabética.

Existem três livros da Bíblia que contém acrósticos alfabéticos: o livro de Salmos contém sete destes acrósticos, Provérbios contém um (a descrição da mulher virtuosa no cap. 31), e Lamentações contém quatro.

É interessante e instrutivo examinar estas passagens das Escrituras, e apreciar a beleza da composição poética do livro divino. Antes, porém, precisamos formalizar uma pergunta que certamente passa pela mente da maioria de nós: por que Deus inclui estes detalhes na Sua Palavra? Alguns dirão que é mera coincidência, ou algo que não tem valor algum para nossa vida prática. “O que me interessa saber se a descrição da mulher virtuosa em Provérbios 31 é na forma de acróstico ou não?” pergunta o cristão prático; “O que importa são as lições espirituais do trecho, não a sua forma poética!”

Não há dúvida que o ensino das Escrituras é o principal; mas afirmar isto não responde à pergunta feita acima: por que Deus inclui tantos ornamentos linguísticos e estruturais na Sua Palavra? Antes de responder apressadamente à pergunta acima, repare que podemos ver o mesmo princípio divino [veja Nota 1] em outras áreas. Pense, por exemplo, na Criação. O ato de criar seguiu uma ordem bela e perfeita [veja Nota 2]; e essa simetria bela tem como única função (ao que me parece) ornamentar e embelezar. Deus criou as coisas nesta ordem não porque precisava ser assim, mas simplesmente porque Ele quis nos mostrar a beleza da ordem divina. Os luzeiros poderiam ter sido criados no segundo dia, por exemplo. Mas Deus, além de fazer um Universo perfeitamente funcional, o fez também seguindo um processo perfeitamente ordeiro.

Não só o ato de Criação, mas também a própria Criação manifesta esta ordem — o Universo, criado num processo tão belo e simétrico, é um Universo lindo. É perfeitamente funcional, mas é também perfeitamente lindo. As estrelas, os rios, o pôr-do-sol, as flores e os beija-flores — tudo é extremamente belo!

Assim também com a Palavra de Deus, um livro que revela perfeitamente a vontade de Deus, e que o faz duma forma tão bela. Deus escondeu muitas joias na Sua Palavra, algumas bem na superfície, outras mais escondidas. Quanto mais lemos a Bíblia, mais chegamos a essa conclusão: é um livro perfeito na sua funcionalidade e utilidade, mas também um livro perfeitamente belo, repleto de joias que mostram a beleza da ordem divina. Como diz o Salmo 19, a Criação manifesta a glória de Deus (vs. 1-6), e o Seu livro é igualmente perfeito (vs. 7-11).

Voltando à pergunta repetida acima: por que Deus inclui estes acrósticos na Sua Palavra? Não tenho certeza; talvez foi para dar um selo de autenticação divina a este livro; talvez foi para aquecer nossos corações e fazê-los transbordar em louvor a Ele. Não tenho certeza; mas tenho certeza que foi Ele próprio quem acrescentou estas pinceladas de beleza divina a este livro perfeitamente funcional. E se Ele assim fez, não posso deixar de procurar estas pinceladas. Não posso desprezar o que Ele achou por bem fazer.

Minha intenção em destacar estas coisas é estimular cada salvo a dedicar-se, mais e mais, ao estudo deste livro sublime. Como outros já disseram, este livro é tão claro que uma criança entende sua mensagem, mas é também tão profundo e cheio de perfeições que a mente mais privilegiada jamais ficará entediada diante deste vasto mar de sabedoria.

“Tenho visto fim [“limite”, RC] a toda a perfeição, mas o Teu mandamento é amplíssimo” (Sl 119:96).

Salmos acrósticos

Já mencionei que há sete Salmos acrósticos (alfabéticos), que podem ser divididos em dois grupos: quatro Salmos tem uma estrutura perfeita (Salmos 37, 111, 112 e 119), enquanto outros três tem uma estrutura alfabética bem visível, mas irregular (Salmos 25, 34 e 145). Esta divisão de grupos de sete em quatro e três (e não cinco e dois, ou seis e um) é extremamente comum na Bíblia, e testifica da sua perfeição. Convém acrescentar que muitos comentaristas consideram que os Salmos 9 e 10 formam, juntos, outro acróstico (porém com sete letras omitidas).

Salmo 37

A estrutura alfabética deste Salmo é destacada na ilustração abaixo.

Salmos 111 e 112

Um exemplo notável da beleza dos acrósticos bíblicos são os Salmos 111 e 112. Ambos contém dez versículos, mas vinte e dois versos (no sentido poético — uma linha de um poema). Cada um desses vinte e dois versos começa com uma letra do alfabeto hebraico (que só tem vinte e duas letras, diferentemente do nosso alfabeto), e na ordem exata do alfabeto (veja a ilustração abaixo).

Com isso percebemos que os dois salmos formam um par, e devem ser estudados juntos. Olhando mais de perto, percebemos que o Salmo 111 descreve Deus (Seu caráter e Sua conduta), enquanto que o Salmo 112 descreve o servo de Deus (seu caráter e sua conduta). Ambos os salmos começam com “Louvai ao Senhor” (literalmente, “Aleluia”), depois seguem um paralelo impressionante, que o leitor atento poderá ver comparando os dois salmos na ilustração abaixo. Olhe com cuidado para os salmos, e veja como o caráter e a conduta do servo de Deus devem refletir o caráter e a conduta do Seu Senhor.

Na ilustração também são destacadas duas palavras hebraicas diferentes que indicam coisas eternas: ‘ad e olam. Cada uma destas palavras ocorre três vezes no Sl 111 e duas vezes no Sl 112. Vale a pena estudar estas ocorrências.

Salmo 119

Quero destacar a estrutura perfeita deste salmo, sua extensão prolongada, e sua exposição profunda da Palavra de Deus.

Estrutura perfeita

O Salmo 119 é o mais perfeito dos Salmos alfabéticos, contendo cento e setenta e seis (8 x 22) versículos numa estrutura impressionante: cada grupo de oito versículos é dedicado a uma letra do alfabeto hebraico, numa sequência perfeita. Cada um dos primeiros oito versículos começam com alef. Os vs. 9 a 16 começam, todos, com bet; os próximos oito versículos (vs. 17 a 24) começam com guimel, e assim sucessivamente, até chegarmos aos últimos oito versículos do salmo (vs. 169 a 176), todos começando com a última letra do alfabeto hebraico, tav.

Extensão prolongada

O tamanho deste Salmo também impressiona; não há nada que se compare na Bíblia. Para perceber a singularidade do seu tamanho, é necessário lembrar que, diferentemente dos demais livros da Bíblia, nos livros de Salmos e Lamentações de Jeremias as divisões em capítulos não foram feitas depois da Bíblia ser escrita, mas fazem parte da sua estrutura original. A Bíblia foi escrita sem nenhuma divisão de capítulos ou versículos (a divisão em capítulos surgiu no século XIII) mas o livro de Salmos é diferente por ser composto de salmos avulsos, cada um sendo um poema completo em si mesmo. Por isso lemos de Paulo se referindo ao “Salmo segundo” (At 13:33). A diferença de tamanho entre capítulos da Bíblia é obra humana, mas o Salmo 119 chegou até nós no tamanho em que foi inspirado por Deus.

Levando isto em conta, repare que o Salmo 119 é maior do que qualquer outro Salmo (mais do que o dobro) e maior do que muitos livros da Bíblia. A lista abaixo apresenta em ordem crescente (baseado no texto em português) vinte e três livros na Bíblia que são, com certeza, menores do que o Salmo 119, e outro dois que são possivelmente menores: II e III João, Filemon, Judas, Obadias, Tito, II Tessalonicenses, Ageu, Jonas, Naum, Habacuque, Sofonias, II Pedro, I Tessalonicenses, II Timóteo, Joel, Colossenses, Rute, Filipenses, I João, Tiago, I Timóteo, I Pedro, Cantares e Miquéias.

Exposição Profunda

A estrutura do Salmo é magnifica. Sua extensão também impressiona. E o que dizer sobre sua exposição? Pode parecer contraditório, mas os cento e setenta e seis versículos deste Salmo tratam de um mesmo tema: a Bíblia!

A Massorá [veja Nota 3] traz, ao lado do v. 122, uma lista de dez palavras características do Salmo. Em Português, estas palavras são: “caminho, “testemunho”, “preceito” (ou “ordenança”), “mandamento”, “lei”, “juízo”, “justiça”, “estatuto”, e duas palavras hebraicas que são traduzidas “palavra” em Português. A Massorá diz que estas palavras correspondem aos Dez Mandamentos, e que o único versículo do Salmo onde não encontramos nenhuma delas é o v. 122.

É verdade que outros vem menos sinônimos das Escrituras neste Salmo. Scofield lista quatro versículos onde ele não encontra nenhuma referência à Bíblia (vs. 90, 121, 122 e 132). A. Clarke acrescenta o v. 84 aos quatro já mencionados. Mesmo concordando com Clarke, porém, veja que fato impressionante: dos cento e setenta e seis versículos do Salmo, apenas cinco não contém uma referência direta e clara à Palavra de Deus! F. J. Dake contou cento e noventa e oito referências à Bíblia neste Salmo!

Não há dúvida, portanto, que o Salmo 119 é, do começo ao fim, o Salmo das Escrituras. “Tanto espaço para o mesmo assunto!”, dizem alguns, e acusam o Salmo de tautologia (“vício de linguagem que consiste em dizer, por formas diversas, sempre a mesma coisa”; Aurélio).

A beleza, porém, se encontra não só nos contrastes entre coisas diferentes e grandiosas, mas também nas diferenças delicadas e sutis entre coisas do mesmo gênero. Como exemplo de que até mesmo a sabedoria humana reconhece isto, veja a Chaconne (de Bach), um dos movimentos de uma música clássica para violino. Consistindo em cerca de quatorze minutos de uma progressão simples repetida em dezenas de variações, é considerada uma das mais sublimes músicas já compostas pelo homem. Brahms, outro compositor de fama mundial, escreveu sobre a Chaconne: “Em uma pauta, para um instrumento pequeno, o homem compôs um mundo inteiro dos mais profundos pensamentos e mais intensos sentimentos”.

Só quem não aprecia beleza musical encontrará tautologia na Chaconne; só quem não aprecia a Palavra de Deus encontrará tautologia neste Salmo. As Escrituras são seu único tema, mas não há nada de repetitivo ou redundante; numa estrutura maravilhosa, Deus nos apresenta a perfeição divina que, dentre todos os livros que a Terra já viu, somente a Bíblia possui. “Tenho visto fim a toda a perfeição, mas o Teu mandamento é amplíssimo” (v. 96). Sem dúvida um livro como a Bíblia exige um Salmo tão perfeito na sua estrutura, tão prolongado na sua extensão, e tão profundo na sua exposição!

Salmos 25, 34 e 145

O Salmo 25 tem uma frase muito pequena na quinta letra do alfabeto (he), omite a décima-nona letra (cof) e repete a vigésima (reish), além de repetir a décima-sétima letra (pe) no final do Salmo. O Salmo 34, assim como o Salmo 25, tem a frase pequena na quinta letra (he) e a repetição da décima-sétima letra (pe) no final do Salmo. O Salmo 145 tem uma sequência quase perfeita, omitindo apenas a décima-quarta letra (nun). Veja estes detalhes destacados nas ilustrações abaixo.

Certamente há um propósito nestas irregularidades. Será que Deus quer chamar nossa atenção para algumas partes do Salmo? Confesso que não sei; mas sei que um dia entenderemos o “por quê” de todos estes detalhes maravilhosos das Escrituras, quando Ele mesmo nos revelar suas glórias!



Lamentações

Os cinco capítulos de Lamentações de Jeremias são cinco poemas. Os dois primeiros e os dois últimos contém vinte e dois versículos cada, enquanto o capítulo central contém sessenta e seis (22 x 3) versículos. O único destes cinco poemas que não é um acróstico alfabético é o cap. 5. Os caps. 1, 2 e 4 são acrósticos simples (cada versículo começa com uma letra do alfabeto hebraico), enquanto que o cap. 3 é um acróstico triplo (isto é, os primeiros três versículos começam com alef, os vs. 4, 5 e 6 começam com bet, etc).

Três dos acrósticos em Lamentações tem uma peculiaridade: invertem a ordem da 16ª e 17ª letra do alfabeto: 2:16, 3:46-48 (lembre do caráter triplo do acróstico neste capítulo), e 4:16 começam com a 17ª letra do alfabeto hebraico (quando, na ordem normal, deveria ser a 16ª letra), e os versículos que seguem (2:17, 3:49-51 e 4:17) começam com a 16ª letra. Ao invés de deduzir que esta inversão da ordem normal foi um descuido do profeta (uma dedução que nega a inspiração divina da Bíblia, e que não explica a repetição desta inversão em três dos poemas deste livro), é mais sábio procurar entender o por quê desta inversão. Se Deus escreveu estes poemas seguindo a ordem do alfabeto, e em três ocasiões inverteu a ordem normal (sempre com as mesmas duas letras), por que Ele fez isto? Estude estes versículos, e procure encontrar alguma coisa que é enfatizada pela mudança da ordem normal. Por exemplo, 2:16 mostra os inimigos do Senhor exultando porque chegou o dia que esperavam; mas o versículo seguinte (que, segundo a ordem do alfabeto, realmente vem antes) mostra que Deus intentou isto desde os dias da antiguidade. Os homens podem intentar mal contra o povo de Deus, e Deus muitas vezes permite que isto aconteça; mas sempre que os homens agem, Deus já havia, de antemão, previsto tudo!

Mesmo sem conseguirmos explicar tudo que estas inversões da ordem normal do alfabeto podem sugerir, cremos que há muitas lições preciosas neste pequeno detalhe das Escrituras.

Provérbios 31:10-31

A descrição da mulher virtuosa que encerra o livro de Provérbios é outra poesia que segue perfeitamente a ordem do alfabeto hebraico, sem nenhuma omissão ou inversão.

Alexander J. Higgins, no Comentário Ritchie do VT, diz que “aqui temos a descrição que Deus faz, de A a Z, de uma mulher de valor. É completa e contém todos os valores. Também é o ABC de Deus do caráter moral e da sabedoria da mulher. É o alfabeto e a linguagem da sabedoria”.

Conclusão

Que a perfeição e beleza das Escrituras nos cative mais e mais. Sua beleza tem um brilho duradouro, que supera as maiores obras humanas; e possivelmente a maior joia da sua coroa é o fato de que esta beleza não é superficial e vã, mas é o brilho que ornamenta palavras de vida eterna, palavras que nos revelam o próprio coração de Deus! “Abre Tu os meus olhos, para que eu veja as maravilhas da Tua lei” (Sl 119: 18).

© W. J. Watterson [Nota 1] Refiro-me ao princípio de acrescentar, às Suas obras, detalhes de beleza que, aparentemente, não tem nenhuma função prática; estão ali somente para embelezar e ornamentar. [voltar ao texto]

[Nota 2] Os seis dias da Criação (Gn cap. 1) apresentam uma simetria notável. No primeiro e no quarto dia, o elemento principal com que Deus trabalha é a luz; no segundo e no quinto dia, é a água; e no terceiro e no sexto, é a terra. Nos primeiros três dias Ele segue a sequência luz-água-terra, e nos próximos três dias a sequência é exatamente a mesma. Podemos dividir os seis dias da Criação em dois grupos, sendo que em ambos são usados os mesmos três elementos: luz, água e terra, na mesma ordem. E podemos comparar esta criação em duas etapas com a descrição dupla da Terra no v. 2: “sem forma e vazia”. Nos primeiros três dias, Deus está dando forma à Terra; nos três dias seguintes, Ele está enchendo-a. [voltar ao texto]

[Nota 3] Os mais antigos manuscritos do Velho Testamento têm, além do texto das Escrituras (em duas ou mais colunas), diversas linhas escritas em letras menores, nas margens superior e inferior e nas laterais de cada página. Estas notas (que não fazem parte do texto original das Escrituras) são chamadas de Massorá. Foram compiladas pelos Massoretas (eruditos judeus que viveram mais ou menos do século VI ao X) com a finalidade de evitar erros nas cópias das Escrituras. Estas notas não são comentários ou explicações sobre o texto, mas fatos e detalhes: a quantidade de palavras e a palavra central de cada livro, ocorrências de certas palavras, etc. Cada vez que o VT era copiado por um escriba, a cópia era verificada através dos dados da Massorá, e se houvesse alguma discrepância, a cópia era destruída integralmente! [voltar ao texto]

Monday 20 October 2014

Figuras das igrejas locais no Éden


O jardim do Éden, onde Adão e Eva habitavam antes do seu pecado, era o paraíso de Deus aqui na Terra. Um local perfeito, onde o homem podia viver em comunhão, também perfeita, com seu Deus. Uma igreja local é, da mesma forma, o local onde Deus hoje procura ter comunhão com Seus filhos, coletivamente. O NT descreve uma igreja local como sendo um santuário onde a santidade de Deus pode ser apreciada (I Co 3:16–17), a casa onde o Altíssimo pode habitar com Seu povo (I Tm 3:14–15), a congregação onde o Senhor pode governar (Mt 18:20). Podemos dizer que uma igreja local é um paraíso aqui na Terra, um oásis no meio deste deserto em que vivemos. Nada mais coerente, portanto, do que procurar semelhanças entre estes dois “paraísos”, entre o local onde Deus teve, pela primeira vez, comunhão com o homem, e o local onde, hoje, Ele procura tal comunhão.

Não vamos considerar, aqui, as figuras das igrejas locais que podemos ver no relacionamento de Adão e Eva com o jardim — vamos nos concentrar na descrição do jardim do Éden em Gn 2:8-10. Antes de pensar nos detalhes, repare o quadro geral apresentado nestes três versículos:

  • o projeto do Pai. O v. 8 nos ensina que Deus é o autor do jardim, e nos fala da alegria e acessibilidade do Éden;
  • a preeminência do Filho. O v. 9 dá mais atenção às árvores do que ao jardim, falando da aparência, do alimento e da atração do Éden (a árvore da vida é uma figura muito clara do Senhor Jesus Cristo);
  • o poder do Espírito. O v. 10 fala do rio (uma figura do Espírito Santo), e nos ensina sobre a altura, a água, e o alcance do jardim do Éden.

Aqui vemos, nas primeiras páginas da Bíblia, aquela cooperação e comunhão entre a Trindade que será destacada de modo consistente no restante das Escrituras. Em toda a Palavra de Deus encontraremos as Pessoas Divinas agindo de forma coerente, sempre em comunhão e cooperação perfeita. Os planos do Pai e o poder do Espírito tem sempre o mesmo objetivo: promover a preeminência do Filho. O Pai planeja tornar o Filho preeminente, e é o poder do Espírito que efetua isto. Assim é em toda a Bíblia, e temos o mesmo aqui no jardim do Éden.

a. O projeto do Pai (2:8)

a.1. Autoria

O jardim do Éden não foi plantado por mãos humanas; a Bíblia afirma claramente que “plantou o Senhor Deus um jardim”. Deus fez tudo conforme Ele queria, de acordo com a Sua vontade e o Seu propósito. E o mesmo acontece em relação a uma verdadeira igreja de Deus hoje em dia; ela será plantada por Deus. Isto quer dizer que não é um decreto humano que determina o nascimento de uma igreja, nem é necessário ter a autorização de uma instituição ou autoridade humana para que ela passe a existir. As palavras do Senhor Jesus Cristo, registradas em Mt 18:20, deixam claro que onde um grupo de cristãos, mesmo que pequeno (“… onde estiverem dois ou três …”), for congregado pelo Espírito Santo e passar a reunir-se regularmente (“… reunidos …”; este verbo, no grego, é um particípio perfeito na voz passiva, indicando um ato que continua no presente, e feito por uma força externa), atraídos unicamente ao nome do Senhor Jesus Cristo (“… em Meu nome”; não somente com a autoridade de, mas atraídos ao, Senhor Jesus), ali existe um “santuário de Deus”, uma igreja local (“ali estou no meio deles”). A operação do Espírito Santo atrai um grupo de cristãos ao nome singular do Senhor Jesus Cristo, e devido à ação desta Pessoa divina, sem qualquer influência ou autoridade humana, Deus planta uma igreja local!

Isto é confirmado pelo Seu aviso à igreja em Éfeso (Ap 2:1–7). Deus mesmo diz que, se necessário, iria remover aquele candeeiro; só Ele poderia fazer isto, pois Ele é quem havia plantado aquela igreja, no começo.

É claro que Ele pode usar vasos humanos para executar esta obra (I Co 3:6–9), mas estes serão apenas “cooperadores de Deus” (I Co 3:9); o poder e a autoridade sempre serão dEle. Que possamos sempre lembrar deste fato tão solene! A igreja não é uma instituição humana, plantada por homens, que pode ser manipulada ou “cortada” por homens. Deus é quem planta; só Ele é quem tem autoridade para plantar, para preservar e até, em casos extremos, para cortar.

a.2. Alegria

O lugar escolhido por Deus para plantar este jardim foi chamado Éden, uma palavra hebraica que significa “agradável”, ou “prazer”. Deus criou um jardim perfeito, onde Ele, juntamente com o homem que criara, poderia passar momentos agradáveis. O profeta Isaías indica que naquele jardim havia “regozijo e alegria, … ações de graça e som de música” (Is 51:3).

Da mesma forma, o Senhor deseja que o Seu povo possa experimentar, hoje, o prazer maravilhoso da Sua presença. E esta comunhão, tão agradável, deve ser encontrada no seio da igreja local. É verdade que cada um deve ter comunhão, individualmente, com seu Salvador, mas é um fato bíblico que, nesta dispensação da graça, Deus fortalece e anima seus filhos através da comunhão da igreja local. Ele quer que, na igreja, haja um só sentimento, um só amor (Fl 2:2), onde os membros mais fracos possam ser ajudados pelos mais espirituais (Gl 6:1), todos “lutando juntos pela fé evangélica” (Fl 1:27). Ele quer que a comunhão sincera e verdadeira do Seu povo, uns com os outros e com Ele, possa animar e consolar a cada um, trazendo verdadeiro prazer espiritual! Aqui na Terra, poucas coisas se comparam à esta comunhão divina; é realmente sublime a alegria que um verdadeiro servo de Deus sente em lembrar do Seu Senhor junto com um grupo dos seus irmãos, por menor ou mais humilde que este grupo seja. Como disse o Espírito, através de Davi: “Oh! Como é bom e agradável viverem unidos os irmãos” (Sl 133:1).

Isto nos faz lembrar, porém, de algo muito importante. Irmãos, será que sentimos prazer nas reuniões da nossa igreja? Ela é um lugar agradável a nós? Se a resposta for “não”, será que estamos nos esforçando, positivamente, para que esta situação mude? Não de uma maneira hipócrita, querendo que todos concordem conosco, mas “considerando cada um os outros superiores a si mesmo” (Fl 2:3).

Além disto, será que a comunhão da nossa igreja local é tão verdadeira e espiritual, que os novos convertidos, ou irmãos mais fracos, sentem prazer nesta comunhão? Será que estamos obedecendo à exortação do Espírito: “… restabelecei as mãos descaídas e os joelhos trôpegos; fazei caminhos retos para os vossos pés, para que não se extravie o que é manco, antes seja curado” (Hb 12:12-13)? Estamos animando, ou ajudando a desanimar?

E a pergunta mais solene: será que o “Senhor, Deus dos céus, Deus grande e temível” (Ne 1:5), considera a minha igreja local como um lugar de alegria? Será que a igreja onde você se reúne é um lugar onde Ele pode gozar de comunhão verdadeira com Seu povo, como Ele fazia, no começo, lá no Éden?

Que Deus nos ajude a apreciarmos a alegria que deve ser característica de cada igreja de Deus, e trabalharmos para consolidar esta alegria, nunca para diminuí-la.

a.3. Acessibilidade

O jardim de Deus foi plantado no Éden, mas o Espírito nos dá ainda mais detalhes; foi “da banda do Oriente” (literalmente, “olhando para o Oriente”). Porque mencionar este fato, aparentemente irrelevante? A Palavra preciosa e perfeita de Deus não omite qualquer coisa necessária, e nem tão pouco menciona qualquer coisa desnecessária. O que podemos aprender, então, desta expressão: “da banda do Oriente”?

A palavra hebraica aqui traduzida “Oriente”, junto com suas cognatas, aparece muitas vezes no Velho Testamento (um total de cento e setenta e uma vezes). Sem tomarmos o espaço necessário para entrar em detalhes, podemos afirmar que, analisando com cuidado todas estas ocorrências, percebemos que o Oriente, na Bíblia, representa o lugar do homem que se afastou de Deus. Quando a Bíblia fala de alguém indo para o Oriente está enfatizando que ele se afasta de Deus, e aquele que vem do Oriente geralmente é alguém que esteve bem longe de Deus. Obviamente, isto é apenas figurativo; ir para o Oriente hoje não é sinônimo de afastamento de Deus, e nem os habitantes do Ocidente são, de qualquer forma, superiores aos do Oriente. Mas o Espírito nos ensina, também, através de figuras, e a figura apresentada pelo oriente, na Bíblia, é a de um lugar longe de Deus. Veja algumas confirmações disto.

A expressão “vento oriental” ocorre dezenove vezes no VT, sendo que, em dezesseis destas, ela é sinônimo absolutamente claro de destruição ou pecado (veja, por exemplo, Gn 41:6; Is 27:8; Jr 18:17; Ez 27:26). Veja, também, as pessoas que foram para o Oriente: Adão e Eva, depois da queda (Gn 3:24); Caim (Gn 4:16); Ló (Gn 13:11); os outros filhos de Abraão (Gn 25:6), etc. Em Ez 8:16, lemos de “cerca de vinte e cinco homens, de costas para o templo do Senhor, e com os rostos para o oriente; adoravam o sol virados para o oriente”. Em vista disto, parece ser justificável afirmar que o Oriente, na Bíblia, indica o lugar do homem longe de Deus.

Como podemos entender, então, o motivo que levou o Espírito a destacar que o jardim do Éden ficava na banda do Oriente do Éden? É o mesmo que temos no Tabernáculo e no Templo construído por Salomão, cujas portas olhavam para o Oriente. É uma figura da graça de Deus, que tornou a salvação acessível ao ser humano. Quando o pecador, perdido em seu pecado, quisesse, pela operação do Espírito, buscar a Deus, ele iria virar as costas ao Oriente, e a primeira coisa que ele poderia ver seria a porta da casa de Deus! Não seria necessário rodear a casa, procurando a entrada; Deus a colocou bem na sua frente. Louvamos a Deus porque Ele não tornou a salvação desnecessariamente complicada. O pecador que deseja ter o perdão dos pecados não tem que sair procurando um caminho escondido; a Porta, aberta pela graça de Deus, está ao alcance do mais fraco ser humano!

Assim também uma igreja local deve ser um lugar acessível [Estou pensando em “lugar” no sentido figurado; não me refiro à entrada no local de reuniões da igreja local, mas à entrada na igreja, passar a fazer parte do corpo]. Não um lugar onde qualquer um entra, sem questionamento, mas onde qualquer um que queira se submeter à Palavra de Deus encontrará livre acesso. Não é uma questão de recepção à Ceia do Senhor, pois o Novo Testamento realmente fala de recepção à comunhão da igreja, e isto inclui muito mais que simplesmente o Partir do Pão. Só poderá ser aceito à comunhão da igreja local (e, portanto, participar da Ceia) aquele que, confessando o Senhor Jesus como Salvador publicamente pelo batismo, estiver disposto a obedecer plenamente os princípios neo-testamentários que governam a igreja local, e manter-se separado do mundo e do pecado. Jamais devemos abrir mão desta exigência. Mas não devemos acrescentar qualquer outro obstáculo; não podemos exigir um certo tipo de roupa (além da vestimenta decente, é claro), ou determinado nível social, ou grau de instrução, etc. Qualquer discriminação humana é totalmente condenada (veja Tg 2:1-13).

Aquilo que Deus exige para a entrada na Sua casa (que hoje é a igreja local, I Tm 3:15) não pode ser esquecido; qualquer ser humano só pode entrar pela Porta. Mas não podemos dificultar desnecessariamente este processo; a porta da igreja local tem que estar olhando para o oriente, para os pecadores e para os indoutos. Adotar táticas humanas, diluir a mensagem, e animar mais as reuniões para atrair o incrédulo, são sugestões da carne; mas mostrar um amor verdadeiro e sincero aos pecadores, apresentar o Evangelho de maneira tão clara que até uma criança possa entender, fazer com que os visitantes se sintam realmente bem-vindos em nosso meio, sair ao encontro deles de casa em casa se eles não querem vir ao salão onde nos reunimos, isto é tornar a igreja acessível.

O padrão elevado que Deus exige tem que ser mantido; o que nós não temos o direito de fazer é acrescentar, às exigências de Deus, as nossas próprias.

b. A preeminência do Filho (2:9)

b.1. Aparência agradável

O jardim do Éden deve ter sido, sem sombra de dúvida, um lugar extremamente belo. Não simplesmente um lugar onde o espírito e a alma encontravam alegria (como vimos acima), mas também um lugar onde os olhos se enchiam com as belezas físicas ali expostas. Deus, o sábio Criador, plantou árvores, e eram árvores agradáveis à vista. Aquele jardim manifestava o poder e a perfeição do Seu Criador.

Da mesma forma, uma igreja local deve manifestar, perante os homens e os anjos, a beleza da santidade de Deus. Além de ser um lugar onde o verdadeiro cristão encontrará prazer espiritual junto com seu Senhor, deve ser também um lugar onde os indoutos ou incrédulos poderão ver a ordem e perfeição que são características do nosso Deus.

I Coríntios cap. 14 deixa isto bem claro. Ao mostrar a necessidade de haver ordem nas reuniões da igreja, o Espírito nos revela, primeiro, o lado negativo (v. 23). Se a reunião for desordenada, os incrédulos ou indoutos irão dizer que somos loucos. Mas os vs. 24 e 25 apresentam o lado positivo: quando tudo é feito “com decência e ordem” (v. 40), o resultado é que o nome de Deus será glorificado (v. 25).

Em relação à “decência”, estamos precisando, hoje em dia, reaprender o significado da palavra “reverência”. Lamentavelmente, muitas igrejas de Deus estão se portando com tanta leviandade, bagunça e falta de reverência, que o nome de Deus acaba sendo blasfemado (compare Rm 2:24). Que o Senhor nos dê a coragem para desprezar as táticas sensacionais e barulhentas, que só agradam à nossa alma; que Ele nos dê a intrepidez necessária para valorizarmos as reuniões simples, reverentes e espirituais que agradam ao nosso espírito e, principalmente, a Deus.

Quanto à “ordem”, é importante lembrarmos que a igreja não é um lugar sem autoridade, onde cada um faz o que bem entende; não é uma ditadura, onde um homem domina sobre os outros; nem é uma democracia, onde a vontade da maioria é feita; a igreja é uma Teocracia, onde Deus reina. Homens fieis e santos, levantados por Ele, presidem sobre o povo de Deus, submetendo-se, porém, ao Senhor dos senhores (Hb 13:17, etc.).

A igreja de Deus é o lugar onde a beleza da Sua santidade deve ser vista. Que possamos fazer tudo com decência e ordem (I Co 14:40), resplandecendo como luzeiros no mundo (Fl 2:15), para que o mundo seja atraído pelas belezas do nosso Deus, reveladas no Senhor Jesus Cristo.

b.2. Alimento

O jardim do Éden não satisfazia apenas aos olhos; também fornecia alimento abundante e variado, com toda sorte de árvore boa para alimento.

Uma igreja que não esteja fornecendo alimento para o rebanho está em grande falta, e dificilmente poderá crescer. Para haver crescimento é necessário alimento, e este deve ser encontrado, principalmente, na igreja, pois o Novo Testamento mostra claramente que é em comunhão com a igreja que o cristão cresce (veja Ef 4:11–16, por exemplo).

Deus fez provisão para esta necessidade, pois “Ele mesmo concedeu uns para … pastores e mestres”. Ele próprio deu, para cada igreja, irmãos capacitados para alimentar o povo de Deus através do ensino da Palavra. E não são somente os pastores e ensinadores que tem esta responsabilidade; os anciãos também devem ser aptos para ensinar (I Tm 3:2). Nem sempre esta aptidão será para o ensino público. Muito pode ser feito em conversas ou visitas particulares, em circunstâncias onde o ensino público não pode, ou não consegue, surtir o efeito desejado. Mas, seja por meio do ensino público ou individual, a verdade é que, em cada igreja local, o alvo deve ser que cada um dos membros esteja encontrando alimento para as suas necessidade.

Neste sentido, como está a igreja onde você se reúne? Há alimento suficiente? Há variedade de alimento (“toda sorte de árvore”)? Se não, você está preocupado com isto? “Mas eu não tenho o dom de ensinar”, você diz; ou então: “Mas eu sou uma irmã; a Bíblia me proíbe de ensinar publicamente na igreja”. Mas, se não temos o dom de ensinar, estamos exortando em particular, com palavras e com nosso exemplo? Se não podemos ensinar publicamente, estamos ensinando em particular? Nós louvamos a Deus pelos servos eruditos que Ele capacitou para nos ensinar; mas não podemos esquecer que não é necessário saber definir hermenêutica ou homilética para poder alimentar o povo de Deus. O Servo perfeito, que soube “dizer uma palavra em tempo oportuno ao cansado”, era Aquele que despertava “todas as manhãs” para ouvir a voz de Deus (Is 50:4). Precisamos dos eruditos; principalmente, porém, necessitamos de homens e mulheres que, não se preocupando com o reconhecimento por parte dos homens, procuram estar em comunhão com Deus, ouvindo a Sua voz, para poderem nos falar palavras oportunas.

b.3. Atração

Quando Eva tentou descrever o jardim do Éden, ela disse que a árvore que estava no meio do jardim era a árvore do conhecimento do bem e do mal (3:2–3). Parece que tanto esta, quanto a árvore da vida, estavam na região central do jardim, e não precisamos discutir qual delas ocupava o centro geográfico. O importante é que, para Eva, a árvore central, a mais importante, era a árvore proibida; para Deus, porém, a árvore que estava no centro do jardim era a árvore da vida (2:9), uma figura muito clara daquele que nos dá a vida eterna, o Senhor Jesus.

O centro de toda verdadeira igreja de Deus será ocupado unicamente pelo Senhor Jesus Cristo. É ao nome dEle que reunimos (Mt 18:20), atraídos por Ele e submissos a Ele. Ele é o Cabeça da Igreja que é o Seu corpo, e será também de toda igreja local que Lhe pertença (Cl 2:19; Ef 4:15, etc.). Não temos o direito de colocar qualquer outra coisa, ou pessoa, no centro da igreja. Se não somos atraídos unicamente ao nome de Cristo, se não permanecemos unidos simplesmente por amá-Lo, se não nos submetemos incondicionalmente à Sua palavra, então renunciamos ao direito de ter a Sua presença conosco. Poderemos ser uma “igreja”, mas não seremos uma igreja de Deus.

Que possamos recusar toda teoria, invenção, preceito ou tradição que vem dos homens, submetendo–nos somente à autoridade de Cristo. Que saibamos respeitar aqueles homens dedicados que Ele próprio levantou para guiar o rebanho, mas jamais permitir que um deles (ou qualquer outro mortal) usurpe o lugar central na igreja local; este lugar pertence somente a Cristo! Que possamos nos esforçar para ver Cristo entronizado, respeitado, obedecido e exaltado em nosso meio!

c. O poder do Espírito (2:10)

c.1. Altura

Percebemos que este jardim era mais alto do que as terras ao seu redor, pelo fato de que o rio saia do jardim e fluía para as terras ao redor. É um fato comprovado que a água, em seu estado líquido, quando não impelida por uma força externa, corre sempre do lugar mais alto para o mais baixo. Como este rio nascia no Éden, e dali saia para outras terras, fica bem claro que o jardim estava num local elevado.

Esta deve ser, também, uma característica das igrejas de Deus hoje. Elas estão no mundo, mas não são do mundo. O mundo é inimigo de Deus (Tg 4:4) — uma igreja local é casa de Deus (I Tm 3:15), é um “santuário de Deus … sagrado” (I Co 3:17). Espiritualmente, deve haver uma distância enorme entre uma igreja de Deus e o mundo. A organização da igreja não irá copiar a política humana, com sua democracia desordeira; as atividades da igreja não poderão ser confundidas com atividades de instituições mundanas; a adoração duma igreja verdadeira será sempre muito superior à religiosidade fria e formal do mundo religioso.

A igreja não deve procurar atrair os pecadores com aquilo que o mundo oferece. O mundo tem diversão, filmes, festas; a igreja deve apresentar algo muito diferente, e muito superior. Há algo de errado com nosso proceder se os incrédulos se sentem bem em nossas reuniões. Numa reunião onde o Espírito tem liberdade de agir, o resultado será exatamente o contrário: o incrédulo ou indouto é “por todos convencido, e por todos julgado” (I Co 14:24). Ele irá se sentir incomodado, percebendo que não somos iguais a ele (espiritualmente); ele irá perceber que é um pecador, e que necessita da salvação. Devemos ser cordiais e amáveis, fazendo com que ele se sinta muito bem-vindo; mas não podemos esquecer que nossa intenção, ao trazê-lo, não é simplesmente que ele volte outra vez; é que ele perceba o seu pecado, e aceite a Cristo.

Em suma: as igrejas de Deus devem ser lugares espiritualmente elevados. Que nos chamem de radicais, fanáticos, etc.; nós não podemos, em qualquer circunstância, abaixar os padrões elevados de santidade e pureza que Deus exige de nós, Seu povo. O desejo de Deus para o Seu povo é que sejam um alvo, um exemplo para o mundo perverso (Fl 2:15). Que responsabilidade! Estamos buscando algo mais elevado do que aquilo que o mundo apresenta? Ou estamos manchando nosso testemunho com a lama da irreverência e leviandade, sob o pretexto de atrair as multidões? “O santuário de Deus, que sois vós, é sagrado” (I Co 3:17). É melhor uma igreja pequena, mas “elevada”, do que uma igreja numerosa vivendo no vale, junto com o mundo.

c.2. Água

O jardim do Éden não era árido ou estéril, como já temos visto; era um lugar onde cresciam toda sorte de árvores; um jardim cheio de vida, exuberante e atraente. Mas, de onde vinha a vida deste jardim? Em parte, da neblina que regava toda a terra (2:6), mas principalmente do rio que saia do Éden.

Um rio, na Bíblia, é uma figura muito apropriada do Espírito Santo, conforme a Palavra de Deus nos explica em João 7:38-39. Este rio, portanto, é uma figura da atuação do Espírito Santo no meio do povo de Deus, dando-lhe a vida e poder necessários para servir ao Senhor. É o Espírito quem nos torna capazes de servir a Deus, pela Sua presença conosco (Jo 14:16) e pelos dons que Ele nos dá (I Co 12:8). Ele também habita na igreja local (I Co 3:16), e é Ele quem irá operar no meio da igreja, levando-nos a obedecer ao Cabeça. A autoridade é de Cristo; o poder é do Espírito.

É fundamental que nossas igrejas tenham um rio para regá–las. A vida, o poder de nossas igrejas não pode vir de outra fonte, a não ser o Espírito Santo. Se, na igreja onde você se reúne, o trabalho é feito no poder do homem, conforme a programação dos homens, onde está o Espírito de Deus? É nosso dever tirar da igreja todas aquelas coisas que só agradam a carne, coisas que o Espírito de Deus jamais nos autorizou a introduzir. Podem ser inofensivas; podem até ser bonitas, mas vão limitar a liberdade que o Espírito tanto deseja ter. As religiões humanas, para atrair e manter seus membros, precisam da ajuda de muitas coisas humanas; uma igreja de Deus, porém, para atrair cristãos ao nome de Cristo, só precisa do poder do Espírito que, como um rio, irá espalhar a Sua influência por todo o jardim.

c.3. Alcance

Aquele rio não permanecia só no jardim do Éden; ele se dividia e atingia outras terras também (Havilá, Cuxe, Assíria), permitindo que elas fossem beneficiadas pela vida que havia nele. Um rio, pela sua própria natureza, não consegue ficar parado, mas avança sempre. Você se lembra daquela profecia impressionante, registrada em Ezequiel 47? Um rio que, quanto mais se afastava do santuário, e quanto mais se aproximava do mar Morto, mais profundo ficava; e o homem que guiava Ezequiel lhe disse: “tudo viverá por onde quer que passe este rio” (v. 9).

O mesmo deve acontecer com uma igreja local. O poder do Espírito Santo, operando nela como um rio, não poderá ser escondido do mundo, nem trancado dentro de quatro paredes. Quando a igreja manifesta, pela direção do Espírito, o Senhorio de Cristo, ela irá resplandecer como um luzeiro no mundo (Fl 2:15), e outros serão atraídos pelo seu testemunho. A ordem do Senhor aos Seus discípulos foi para que avançassem até aos confins da Terra (At 1:8), e o Espírito de Deus deseja estimular-nos a cumprir esta ordem. Veja o exemplo da igreja em Tessalônica: “Porque de vós repercutiu a palavra do Senhor, não só na Macedônia e Acáia, mas por toda a parte se divulgou a vossa fé para com Deus” (I Ts 1:8). Todo cristão sincero deverá estimular esta visão em seus irmãos, desejando expandir, alcançar outras terras que estão secas.

Esta não é uma necessidade distante; muitas vezes, a terra mais seca não está do outro lado do planeta, mas no nosso quintal. Na sua cidade, quantos bairros estão desertos espiritualmente? Perto dali, quantas cidades sem nenhum testemunho conforme as Escrituras? Como seria bom se o Senhor reavivasse em nossos corações o desejo de multiplicar pela divisão. Não divisão contenciosa — isto é sempre obra da carne — mas divisão unida e pacífica. Parece uma contradição; multiplicar pela divisão, dividir com união; mas é a melhor maneira de expandir. Uma igreja, por exemplo, com sessenta membros, pode muito bem se tornar em duas igrejas, cada uma com aproximadamente trinta membros, reunindo em dois bairros diferentes da cidade. Permaneceriam plenamente unidas, cooperando uma com a outra, mas seriam agora duas igrejas locais distintas. Um novo bairro daquela cidade teria a bênção de possuir um testemunho ao nome de Deus (os incrédulos daquele bairro não iriam apreciar isto, mas haveria uma luz brilhando ali). Outras pessoas teriam a oportunidade, não apenas de ouvir o Evangelho pelas pregações, mas de ver o Evangelho pela vida da igreja. E, com o tempo, estas duas igrejas teriam crescido o suficiente para se dividirem novamente, produzindo, pela divisão pacífica e dirigida pelo Espírito Santo, uma verdadeira multiplicação.

Se estamos gozando das bênção do Espírito Santo na nossa igreja, vamos olhar para os lados. Há muitas terras aí fora, mesmo em nossas próprias cidades e regiões, aonde Deus quer acender um candeeiro, espalhando as bênçãos que só o Espírito Santo distribui, trazendo vida a mares mortos, trazendo luz a noites escuras. Que o rio que sai do nosso jardim, da nossa igreja, possa se dividir em quatro, oito, vinte braços, para que, por todos os cantos deste imenso país, possa resplandecer e brilhar a glória de Deus, através do testemunho do Seu povo.

d. Conclusão

Deus plantou o jardim do Éden para nele ter comunhão com o homem. Adão e Eva abusaram deste privilégio, e foram expulsos dali. Depois desta tentativa de comunhão, fracassada por culpa do homem, Deus habitava no meio no Seu povo nas habitações construídas conforme as Suas instruções (no Tabernáculo e nos Templos). Hoje, “entretanto, não habita o Altíssimo em casas feitas por mãos humanas” (At 7:48), pois nesta dispensação Ele habita no cristão, individualmente (I Co 6:19), e na igreja, coletivamente (I Co 3:16-17).

Quantas vezes, porém, sentimos que estamos transformando a casa de Deus em nossa própria casa, onde as nossas leis são obedecidas, as nossas pregações são anunciadas, as nossas músicas são apresentadas, e a nossa honra é buscada. “Não sabeis que sois santuário de Deus, e que o Espírito de Deus habita em vós? Se alguém destruir o santuário de Deus, Deus o destruirá; porque o santuário de Deus, que sois vós, é sagrado”.

Que o Senhor mostre cada vez mais aos nossos corações a santidade e preciosidade duma igreja local. É um paraíso de Deus aqui na Terra. Que possamos estudar a Palavra de Deus, para saber “como se deve proceder na casa de Deus, que é a igreja do Deus vivo, coluna e baluarte da verdade” (I Tm 3:15).

© W. J. Watterson

Tuesday 30 September 2014

A ignorância dos sábios

Nem toda ignorância é resultado de falta de inteligência. Isaías, no cap. 29 da sua profecia, fala de pessoas que ignoram o conteúdo de uma profecia porque ela foi selada, enquanto outros a ignoram porque não sabem ler:

Por isso toda a visão vos é como as palavras de um livro selado que se dá ao que sabe ler, dizendo: “Lê isto, peço-te”; e ele dirá: “Não posso, porque está selado”. Ou dá-se o livro ao que não sabe ler, dizendo: “Lê isto, peço-te”; e ele dirá: “Não sei ler”.

E a culpa de tudo isto? Ouça Isaías novamente:

Pois que este povo se aproxima de Mim, e com a sua boca e com os seus lábios Me honra, mas o seu coração se afasta para longe de Mim, e o seu temor para comigo consiste só em mandamentos de homens, em que foi instruído.

Vemos isto ao nosso redor todos os dias. Pessoas inteligentes, estudiosas e instruídas, que andam tateando no escuro, sem saber aonde vão! Como são verdadeiras as palavras do profeta quanto aos sábios deste século:

Ai dos que querem esconder profundamente o seu propósito do Senhor, e fazem as suas obras às escuras, e dizem: “Quem nos vê? E quem nos conhece?” Vós tudo perverteis, como se o oleiro fosse igual ao barro, e a obra dissesse do seu artífice: “Não me fez”; e o vaso formado dissesse do seu oleiro: “Nada sabe”.

“Dizendo-se sábios, tornaram-se loucos” (Rm 1:22). Seria cômico se não fosse trágico; seria engraçado, se não estivesse tão próximo de nós (nos professores dos nossos filhos, nos líderes da nossa política, etc.). Seria assustador, se não tivéssemos sido avisados.

Oremos pela preservação das nossas famílias e das igrejas do Senhor nestes dias de tanto estudo e tanta ignorância.

© W. J. Watterson

Thursday 25 September 2014

Correção de Pai para filho

“Feriu-o como feriu aos que o feriram? Ou matou-o, assim como matou aos que foram mortos por Ele?” (Is 27:7).

Este versículo em Isaías parece, à primeira vista, um pouco difícil de entender. Quem feriu quem? Mas quando percebemos a mensagem do versículo, vemos mais uma confirmação do cuidado terno do Pai para conosco, mesmo quando Ele nos corrige.

Poderíamos traduzir o versículo assim: “Será que o Senhor feriu Israel da mesma forma que feriu os ímpios que feriram Israel? Será que Ele matou Israel, assim como fez com os ímpios que Ele matou?” A resposta, ímplicita na pergunta, é: “Não!” O Senhor está lembrando Seu povo que seria necessário castigá-los pela sua rebeldia, mas que Ele estaria agindo como um pai ao corrigir um filho, e não como um juiz ao condenar um réu. Como cantamos: “É por amor que nos castiga; mui perto está, e a dor mitiga; Deus é fiel” (Sarah Poulton Kalley, H. e C. nº 206).

Há muitos outros versículos que confirmam esta verdade: “Porquanto darei fim a todas as nações entre as quais te espalhei; a ti, porém, não darei fim, mas castigar-te-ei com medida” (Jr 30:11); “O Senhor me castigou muito, mas não me entregou à morte” (Sl 118:18); “Quando somos julgados, somos repreendidos pelo Senhor, para não sermos condenados com o mundo” (I Co 11:32).

Portanto, que possamos receber a correção do Senhor humildemente, pois Ele nos corrige com amor, e por amor (Hb 12:5-7).

© W. J. Watterson

Tuesday 16 September 2014

O maná e a vida de Cristo

Muito já foi escrito acerca das diversas lições que o maná nos ensina sobre Cristo. Nesta pequena meditação quero destacar a maneira como o maná foi chamado na Bíblia (seja pelos homens, seja por Deus). Temos sete nomes diferentes para descrever o maná:

  1. Pão dos Céus (Êx 16:4);
  2. Maná (Êx 16:15);
  3. Pão vil (Nm 21:5);
  4. Trigo do Céu (Sl 78:24);
  5. Pão dos anjos (Sl 78:25);
  6. Comida espiritual (I Co 10:3);
  7. Maná escondido (Ap 2:17).

O mais impressionante desta lista é perceber como estes títulos, na ordem em que aparecem nas Escrituras, apresentam um resumo cronológico do relacionamento de Cristo com os homens. Os primeiros quatro descrevem Sua trajetória dos Céus até o Calvário, e os últimos três resumem Seu ministério presente. Como são perfeitas as Escrituras! Quando Deus inspirou Moisés a escrever Êxodo cap. 16, Ele já tinha em vista o texto de Apocalipse 2, e distribuiu estes sete títulos pela Sua Palavra desta forma tão perfeita.

Sem tomar muito espaço para desenvolver este assunto, repare resumidamente os paralelos entre a lista de sete títulos acima e a vida do Senhor Jesus.

O primeiro título, Pão dos Céus, lembra-nos que Cristo veio dos Céus para habitar entre nós. Para muitos Ele era de Nazaré; alguns poderiam afirmar que Ele viera de Belém; na realidade, Ele veio do Céu.

O segundo título (“maná”) indica espanto e surpresa. A exclamação dos judeus quando viram o maná pela primeira vez (“Que é isto?”, Êx 16:15) é, no hebraico, “Maná?” Surpresos ao ver algo totalmente diferente, eles disseram: “Maná?”, ou, em português: “Que é isto?”, e esta expressão acabou se tornando o nome mais conhecido deste alimento. O espanto dos judeus é, até certo ponto, normal (afinal, nunca antes alguém vira maná), mas é também, injustificável (pois Deus havia avisado no dia anterior que lhes daria pão do Céu). A verdade é que, por esquecimento, ou por desprezo, ficaram espantados quando viram o maná.

É exatamente isto que aconteceu com o Senhor quando Ele veio ao mundo. Apesar da Sua vinda ter sido amplamente profetizada, e do povo de Israel aguardar ansiosamente a vinda do Messias, quando Ele finalmente veio, ficaram espantados. Os principais dos judeus admiraram a Sua inteligência e respostas quando Ele tinha doze anos (Lc 2:47). Os habitantes de Nazaré, que conviveram com Ele durante toda a Sua infância e juventude, quando O ouviram pregar pela primeira vez “se maravilhavam … e diziam: Não é este o Filho de José?” (Lc 4:22). A maneira como Ele nasceu e viveu, a maneira como Se comportou, a maneira como pregava, as pessoas com quem andava, tudo foi motivo de espanto para aqueles que deveriam estar preparados para recebê-lO.

Quando passamos para o terceiro título (“Pão vil”) somos lembrados que os homens rapidamente passaram do espanto para o ódio, e clamaram pedindo a Sua crucificação.

O quarto título, porém, nos lembra que aquele que os homens odiaram e crucificaram produziu muito fruto para Deus pela Sua ressurreição. Quando Deus chama o maná de “trigo dos Céus”, a substituição da palavra “pão” pela palavra “trigo” muda a ênfase do alimento, não mais enfatizando o sustento que ele traz, mas sim o fruto que ele produz (o trigo é muitas vezes usado nas Escrituras como símbolo de fruto; veja Jo 12:24).

O quinto título (“pão dos anjos”) nos lembra que hoje Ele está rodeado dos anjos, sendo adorado na glória celeste, enquanto que o sexto (“alimento espiritual”) lembra-nos da nossa necessidade de alimentar-nos dEle enquanto atravessamos o deserto em que estamos hoje.

E, por fim, o próprio Senhor fala do “maná escondido”. Em Êx 16:32-34 encontramos a ordem do Senhor para guardar um ômer de maná perante o Senhor, e este ômer de maná foi escondido dentro da arca da aliança (Hb 9) no Santo dos Santos. Tudo no Tabernáculo fala de Cristo; as coisas “escondidas”, porém, aquelas que ficam além do véu, sem dúvida falam daquilo que Cristo representa para o Pai, das belezas e glórias dEle que estão ocultas ao olho humano. Creio que o Senhor está dizendo que o vencedor poderá apreciar belezas da glória de Cristo que apenas o Pai conhece. Quão grande seria este privilégio! Não apenas conhecê-lO como Seus santos O conhecem, mas conhecê-lO como o Pai O conhece! Lembrando que I Co 2:9-10 nos fala de coisas inescrutáveis para o homem natural, mas que são reveladas hoje aos que O amam, podemos crer que este privilégio pode ser nosso hoje!

Assim, os sete títulos falam de como Cristo encarnou-Se (“pão dos Céus”), foi recebido com espanto (“maná — que é isto?”) e ódio (“pão vil”), mas pela Sua morte e ressurreição produziu muito fruto para Deus (“trigo do Céu”). Elevado à glória celeste, Ele hoje é o “pão dos anjos” quanto ao Céu, e o “alimento espiritual” para Seu povo aqui na Terra. Como seria bom se também estivéssemos nos alimentando do maná escondido, que tanto agrada ao coração do Pai!

Levantemos cedo de nossas camas, então, ansiosos por colher o Maná diário do qual tanto precisamos!

© W. J. Watterson

Monday 25 August 2014

Os sete candeeiros de ouro

Autor desconhecido (favor informar se souber)
Na visão maravilhosa que João teve do Senhor Jesus na ilha de Patmos (Apocalipse cap. 1), a primeira coisa que ele descreve são os sete candeeiros. Não que eles fossem aquilo que mais se destacava na visão — pelo relato de João, fica claro que o Senhor, em toda a Sua glória, foi quem prendeu a atenção do apóstolo. Mas quando João vira, ele vê primeiro “sete castiçais de ouro”.

Por quê? Se lembramos que os candeeiros são figuras das sete igrejas (que, por sua vez, são representativas de todas as igrejas locais desta dispensação), então percebemos como é destacada a importância do testemunho de uma igreja local. Os candeeiros só estavam ali porque o Senhor estava ali, e só chamaram a atenção de João momentaneamente; mas foram mencionados primeiro. Não era possível olhar para os candeeiros e não ver o Senhor, e não era possível olhar para o Senhor sem que seu olhar passasse pelos candeeiros. Da mesma forma, sabemos que uma igreja local só existe enquanto o Senhor está ali, e toda a importância e glória da igreja está nEle; mas a igreja tem uma importância enorme, pois ela é um dos meios pelos quais Cristo pode ser conhecido do pecador hoje em dia; ela é um testemunho dEle.

Repare que eram sete candeeiros, não um candelabro com sete lâmpadas como no Tabernáculo. O candelabro destacava a união do povo de Israel, mas estas sete peças individuais, separadas, destacam a autonomia de cada igreja local. Não estão ligadas uma à outra; o único elo que unia estes candeeiros era o Senhor no meio.

Eram sete candeeiros (a melhor tradução da palavra grega luchnia), isto é, um suporte para lâmpadas que consomem óleo, e não velas. A figura é importante. As igrejas não são apresentadas sob a figura de velas (isto é, algo que produz luz enquanto consome-se a si mesmo), mas sim como lâmpadas ou lamparinas (isto é, algo que produz luz ao queimar óleo). Assim é destacada a importância do óleo, que nas Escrituras é uma figura do Espírito Santo. As igrejas só podem iluminar através da operação do Espírito Santo.

Eram sete candeeiros de ouro! O ouro fala-nos de algo precioso e puro, assim como uma igreja local é preciosa aos olhos de Deus. Pode ser (e muitas vezes é) desprezada pelo mundo, e até por muitos cristãos, mas é preciosa ao Senhor. No passado Deus podia dizer de Israel: “Aquele que tocar em vós toca na menina do Seu olho” (Zc 2:8). Hoje, o mesmo Deus afirma, falando duma igreja local: “Se alguém destruir o santuário de Deus, Deus o destruirá; porque o santuário de Deus, que sois vós, é sagrado” (I Co 3:17).

Esta visão dos sete candeeiros de ouro, portanto, nos fala sobre:

  • O alvo das igrejas — direcionar as atenções para Cristo;
  • A autonomia das igrejas — decorrente da autoridade de Cristo;
  • A atuação das igrejas — depende da ação do Espírito Santo;
  • A avaliação das igrejas — destacando a apreciação de Deus.

Que privilégio fazer parte de uma igreja local, separada dos sistemas e organizações do Cristianismo professo.

© W. J. Watterson

Monday 18 August 2014

Alguém orou

"Eastman Johnson, Child at Prayer, circa 1873" by Eastman Johnson


Escrito em 1996, livremente baseado num poema em inglês de F. M. Nesbit (leia o original).

Alguém orou

Das garras vis do tentador
Meu Deus salvou um pecador.
“Por quê?”, alguém pensou;
Porque alguém orou…

A fraca ovelha, sem vigor,
Foi restaurada com amor;
“Por quê?”, alguém pensou;
Porque alguém orou…

Olhando o fruto, o semeador
Agradeceu ao seu Senhor.
“Por quê?”, talvez pensou;
Porque alguém orou…

© W. J. Watterson

Monday 11 August 2014

Preso (ainda)

Mais um poema antigo (este de Abril de 1995), e que também trata da terrível luta contra a carne. Prometo que na semana que vem posto algo mais animador e alegre. Creio que há proveito em reconhecer nossas fraquezas, e sem dúvida há uma beleza especial que nasce da tristeza. Como escreveu I. Y. Ewan: “There is a joy that lies where pearls lie, deep,/Too deep for those who have no heart to weep” (que quer dizer, mais ou menos: “Há uma alegria que se esconde com as pérolas no fundo do mar,/Fundo demais para quem nunca aprendeu a chorar”). Mas não convém ficar ocupado demais com estas coisas (“wallowing in the Slough of Despond”); é melhor, como disse Jeremias, “trazer à memória o que me pode dar esperança” (Lm 3:21).


Preso (ainda)

Quantas vezes tropecei!
Eu quis lutar (ah, como tentei!)
Mas cada vez que levantei,
     A carne ainda me seguia…

Um passo, dois, às vezes três,
E o ataque vinha outra vez;
Um golpe seco, de uma vez,
     E a carne ainda me vencia…

Com prepotência eu dizia:
“Chega! Agora nasce outro dia,
E eu irei vencer!” Eu ria,
     Mas a carne ainda me iludia…


Na Tua casa, meu Senhor,
(E só ali) serei um vencedor;
Terei pra sempre o Teu amor,
     E a carne nunca mais verei!

Só resta, agora, esperar…
E enquanto o dia não raiar,
Me ajude, ó Pai, a Te agradar;
     Pois a carne ainda me perturba…

© W. J. Watterson

Wednesday 6 August 2014

Miserável homem que sou

Outro poema antigo (Fevereiro de 1995), baseado em Romanos 7:24-25. Como poema não é grande coisa, e a pobreza da rima chega a ser constrangedora em alguns versos (“entrega” e “trégua”, por exemplo). Decidi publicá-lo mesmo assim, com a expectativa de incentivar algum cristão na sua luta contra a carne. Quantas vezes desanimamos ao perceber a força e insistência da velha natureza, com seu ódio, sua preguiça, sua imoralidade. Quão preciosas as palavras com que Paulo encerra este capítulo: “Graças a Deus por Jesus Cristo nosso Senhor”.

Miserável homem que sou

Como eu queria ser perfeito!
Subir aos ares sem defeito,
Beijar as nuvens com a calma
Que só tem a pura alma!

Como eu queria Te agradar!
Mostrar que já consigo amar
Os que me odeiam, e servir
A todos, sem nada exigir!

Como eu queria…

Mas a carne não se entrega,
Não desiste nem dá trégua
Nesta luta angustiante,
Sem descanso, constante.

Eu clamo, então: “Quem me livrará?
A minha carne, quem a pisará?”
As trevas fogem; eis a luz:
“Graças a Deus por Cristo Jesus!”

© W. J. Watterson

Tuesday 29 July 2014

Maior tristeza, melhor provisão

Um pequeno detalhe na vida de Elias ilustra a misericórdia de Deus. “Assim como um pai se compadece de seus filhos, assim o Senhor Se compadece daqueles que O temem. Pois Ele conhece a nossa estrutura; lembra-Se de que somos pó” (Sl 103:13-14).

Em três situações distintas Elias recebeu alimento da parte de Deus de forma milagrosa. Comparando estas três situações na sua ordem cronológica, vemos que, à medida que o ânimo de Elias diminuía e sua tristeza aumentava, a provisão de Deus se tornava mais especial e preciosa:

  • Logo no começo do seu ministério, cheio de coragem e vigor, Elias foi alimentado por corvos (I Rs 17:4);
  • Quando o ribeiro Querite secou e Elias começou a sentir os efeitos da sua fidelidade a Deus, Deus o alimentou através de uma viúva (I Rs 17:9);
  • Quando ele fugiu para o deserto e pediu que Deus tirasse a sua vida, Deus o alimentou através de um anjo (I Rs 19:5-7 — possivelmente o próprio Senhor; veja a expressão “Anjo do Senhor” no v. 7). 

Ser alimentado por corvos era algo impressionante e milagroso; mas corvos eram animais imundos para o povo de Israel. Ser alimentado por uma mulher era algo muito mais confortante (mesmo sendo um mulher viúva, pobre, sem recursos). Mas nada poderia se comparar ao privilégio de ser alimentado por um anjo de Deus. E Deus reservou este privilégio para a hora de maior fraqueza do Seu servo.

Podemos confiar na fidelidade de Deus, que sempre cuidará de nós em qualquer circunstância. E podemos nos alegrar na misericórdia de Deus, que reserva as mais sublimes bênçãos para os momentos de maior provação e dificuldade.

© W. J. Watterson

Wednesday 23 July 2014

Trevas e Luz

Eu vejo num abismo profundo
Um pobre enigma entristecido;
E preso, bem lá no fundo,
Gemidos de um sonho esquecido…

Eu vejo num abismo profundo
(Sem forma, sem cor, sem cheiro)
Uma centelha de outro mundo,
Um lampejo verdadeiro.

Eu vejo um abismo profundo
Perder-se de vista ante o meu Deus;
E vejo um pobre, fraco, e imundo
Achar descanso nos braços Seus.

Escrito em 23/12/94

© W. J. Watterson

Monday 21 July 2014

Não julgues

Não critiques o homem que tropeça,
Que vai mancando, arqueado,
A não ser que conheças as suas dores
Ou já tenhas carregado o seu fardo.
Pode ser que haja calos em seus pés
Que ele não mostrou a ninguém;
Ou (quem sabe!) o seu fardo em tuas costas
Não te faria tropeçar também?

Não zombes do homem que está caído
A não ser que o mesmo golpe te atingiu,
Ou que conheças a humilhação
Que só conhece quem já caiu.
Talvez sejas forte, mas … quem sabe,
Se o inimigo viesse te atacar
Da mesma forma, nas mesmas circunstâncias …
Tais golpes não poderiam te derrubar?

Não apedrejes o homem que pecou
Como se fosses incapaz de errar,
A não ser que tenhas total certeza
De seres perfeito em teu andar.
Se o tentador viesse sussurrando,
Como fez com teu irmão,
Será que tu (às vezes descuidado!)
Não cairias nesta mesma transgressão?

(Escrito em Setembro de 1994, baseado num poema em inglês.)

© W. J. Watterson

Sunday 13 July 2014

Por quê?

Há meses que choro, sem dor,
Abraçando um ermo sombrio;
Meus olhos suplicam por calor,
Mas meu sonho está tão frio…

Olhando de longe, eu vejo
Minha vida se quebrando.
As vezes, num breve lampejo,
Um sonho mártir sai vibrando,
Gritando que encontrou a paz;
Mas meus temores, qual vil açoite,
Gritam mais, que não há paz,
E eu me rendo à dor da noite…

E longe (bem longe) alguém me observa,
Confuso, sem saber o que dizer.
Um lindo anjo, puro, observa,
Mas não consegue entender.
“Senhor”, ele diz, “por que não confiam
No Teu amor, na Tua graça e paz?
Por que lutam, sofrem, se afadigam,
Se são ovelhas do Deus da Paz?”

O Deus da Paz não respondeu,
Mas pela Sua face santa uma lágrima escorreu…

(Escrito em Abril de 1994)

© W. J. Watterson

Thursday 3 July 2014

A grande comissão

Uma breve consideração sobre a comissão do Senhor Jesus Cristo, registrada em dois dos Evangelhos. Baseada em uma pregação numa conferência alguns anos atrás.

Leitura: Mateus 28:18-20 e Marcos 16:15-20



Os versículos acima apresentam aquilo que é chamado de A Grande Comissão — a última ordem do Senhor Jesus Cristo aos Seus servos antes de deixar este mundo. Certamente devemos prestar atenção ao que Ele disse, e nos familiarizarmos bem com esta comissão.

Em primeiro lugar, repare que esta comissão tem dois componentes distintos, cada um apresentado por um dos evangelistas. Em Mateus lemos: “Ide, fazei discípulos de [literalmente, “discipulai”] todas as nações”, e em Marcos: “Ide por todo o mundo, pregai o Evangelho a toda a criatura”. As duas ocorrências do verbo “ide” nestes dois trechos estão no particípio (no grego), e os únicos verbos que estão na voz imperativa nestas duas comissões são “fazei discípulos [discipulai]” em Mateus e “pregai” em Marcos. Hoje em dia ouvimos muita ênfase sendo colocada no verbo “ide”, mas precisamos lembrar que, apesar de toda a importância de irmos ao mundo inteiro, a ênfase nestes dois trechos não é no “ir”, mas no “pregar” e “discipular”.

A comissão, portanto, é dupla, e poderia ser traduzida assim: “Indo por todo o mundo, pregai o Evangelho a toda a criatura, e discipulai todas as nações”. Mateus apresenta um aspecto dela (o discipulado), Marcos outro (a evangelização), e os outros dois evangelistas a omitem totalmente.

Estas diferenças entre os quatro evangelistas são de suma importância para entendermos corretamente a mensagem de cada um destes relatos inspirados. São quatro retratos da mesma Pessoa e da mesma vida, mas vistos de quatro pontos de vista diferentes. Muitos já tem comparado os quatro relatos com os quatro seres viventes de Ezequiel cap. 1 e Apocalipse cap. 4, seguindo a mesma ordem apresentada em Apocalipse:

  • O primeiro era semelhante a um leão, um símbolo de realeza (Ap 5:5). Em Mateus, Cristo é apresentado como o Rei de Israel.
  • O segundo era semelhante a um bezerro, figura de serviço (I Co 9:9; Pv 14:4). Em Marcos, Cristo é apresentado como o Servo perfeito.
  • O terceiro animal tinha o rosto de homem, lembrando-nos da compaixão humana (Os 11:4). Lucas, o médico amado, nos apresenta o Homem perfeito.
  • O quarto era semelhante a uma águia voando, lembrando-nos daquilo que é do Céu, alto demais para a nossa compreensão (Pv 30:18-19). João nos apresenta a perfeição do Filho de Deus.

Por que Deus nos revelou o Seu Filho assim? Como Andrew Jukes escreve, isto facilita a nossa compreensão da multiforme beleza do nosso Senhor. Com nossa visão limitada, só conseguimos ver as diferentes cores que compõe um feixe de luz quando um prisma é usada para separar estas cores uma das outras. Assim o Senhor, conhecendo a nossa limitação, nos deu estas quatro revelações complementares do Seu Filho. Na glória dos Céus poderemos vê-lO como Ele é, mas hoje é necessário termos estes retratos diferentes. O jardim do Éden, com suas condições perfeitas, podia comportar um rio. Mas quando aquele rio saia do Éden e alcançava as terras comuns que rodeavam o Jardim de Deus, era necessário que ele se dividisse em quatro braços. Assim também com Cristo.

Outro rio do VT nos ajuda aqui. Em Ez 47 lemos de um rio que saia do Templo e atingia o deserto, levando vida e bênção a todos. Quatro vezes Ezequiel é chamado a atravessar o rio, que vai se tornando progressivamente mais profundo. Assim Mateus apresenta um retrato do Senhor que é mais simples de compreender: Ele é o Rei, exatamente como os judeus esperavam que seu Messias fosse. Marcos, falando-nos de como o Rei se fez Servo, apresenta algo que confunde o ser humano — temos dificuldade de entender um amor que faz alguém se humilhar tanto. Em Lucas, porém, as águas são mais profundas: o Rei eterno não se fez apenas servo, Ele tomou a forma humana. Quem pode compreender o mistério da encarnação? Quando chegamos em João, porém, encontramos aquele “rio que eu não podia atravessar”, como escreve Ezequiel. João nos revela detalhes do relacionamento divino entre o Pai e o Filho que estão ausentes nos outros Evangelhos, e nos levam até às portas do Céu.

Lembrando que cada um dos Evangelistas apresenta a mesma história, mas de pontos de vistas diferentes, devemos prestar atenção aos diferentes aspectos da comissão do Senhor Jesus que são apresentados por Mateus e por Marcos. É uma comissão só, com dois componentes principais (evangelizar e discipular) — mas não é à toa que esta única comissão é apresentada em dois relatos bem distintos.

Consideremos, então, resumidamente, os dois componentes da comissão do Senhor Jesus.

Pregai (Marcos)

Comecemos com Marcos, pois no nosso serviço para o Senhor “pregar” vem antes de “discipular”. Consideremos quatro coisas neste trecho: a comissão, a forma como o Comissionador (Cristo) é apresentado, a companhia do Senhor com os discípulos, e o contexto da comissão.

A comissão

“Ide por todo o mundo, pregai o Evangelho a toda criatura”

Há três elementos desta comissão que podemos destacar: o ato (pregar), seu assunto (o Evangelho) e seu alcance (todo o mundo e toda criatura).

a) O ato (pregai). O verbo que é usado aqui pelo Senhor quer dizer, literalmente, “proclamar como um arauto” (o dicionário de Thayer acrescenta: “sempre com uma sugestão de formalidade, solenidade e autoridade que exigem atenção e obediência”). Em tempos antigos, o arauto era um funcionário escolhido pelas autoridades para transmitir ao povo comunicados importantes. Vestido com vestes oficiais, ele lia, em voz alta e em locais públicos, aquilo que o governante lhe havia entregado para declarar. Ele não tinha a função de explicar o porquê daquela mensagem, nem exortar os ouvintes a obedecê-la — a sua responsabilidade era apenas proclamá-la.

“Pregar” não é dialogar, nem discutir, nem ensinar por métodos indutivos, mas é declarar, anunciar, dar um recado. Veja a diferença apresentada por Paulo em Gl 2:2: “E subi por uma revelação, e lhes expus o evangelho, que prego entre os gentios” (Gl 2:2). Aos irmãos ele “expôs” aquilo que “pregava” entre os gentios — “expor” e “pregar” não são sinônimos.

Irmãos, a pregação é o método escolhido por Deus para salvar pecadores (I Co 1:21). É claro que Ele também salva usando o Evangelho exposto de outras formas (como a conversa particular entre Filipe e o eunuco, por exemplo) — mas tanto I Co 1:21, quanto a comissão do Senhor, enfatizam a importância de se pregar o Evangelho! Há uma solenidade e autoridade associadas à pregação que faltam em outras formas de apresentar esta mensagem gloriosa, e toda igreja local deve dar importância à pregação. Os salvos podem (e devem) proclamar o Evangelho de todas as formas ao seu alcance: distribuindo folhetos, conversando em particular com aqueles que mostram interesse, etc., mas nunca em detrimento da pregação pública do Evangelho. Em outras palavras, nunca falte de uma reunião onde o Evangelho será pregado publicamente para distribuir folhetos, ou fazer um estudo, ou algo semelhante. Como igreja local, devemos dar prioridade à pregação do Evangelho, com reuniões semanais para este fim, e, sempre que possível, séries de reuniões de evangelização.

Num dia em que muitas igrejas estão preocupadas em tornar o Evangelho mais acessível, menos formal e solene, que nós possamos entender que a solenidade da pregação é enfatizada na comissão do Senhor Jesus Cristo.

b) O assunto (o Evangelho). É importante pregar; mas é fundamental pregar o Evangelho, não qualquer outra coisa! Temos um resumo do Evangelho em I Co 15:1:4: “Também vos notifico, irmãos, o Evangelho … Que Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras, e que foi sepultado, e que ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras”. Resumidamente, portanto, podemos afirmar que toda pregação do Evangelho irá apresentar a razão da morte de Cristo (Ele morreu por nossos pecados) e o resultado da morte de Cristo (Ele ressuscitou ao terceiro dia). É necessário mostrar que o pecado é tão grave que exigiu a morte do próprio Filho de Deus, e que a morte de Cristo é o sacrifício eficaz e suficiente para a nossa salvação (a ressurreição é a prova da eficácia da Sua morte, At 17:31). Como diz Rm 4:25, o Senhor Jesus Cristo “por nossos pecados foi entregue, e ressuscitou para nossa justificação”.

É assim que pregamos? Ou gastamos a reunião inteira exortando o pecador quanto à brevidade da vida, quanto à necessidade de crer, mas não apresentamos Cristo crucificado como o meio de salvação? Podemos dizer, como Paulo: “Nós pregamos a Cristo crucificado”?

Vamos pregar, e pregar o Evangelho!

c) O alcance (todo o mundo, toda a criatura). Duas expressões semelhantes que mostram a abrangência da pregação do Evangelho. Em todo lugar aonde formos, e para qualquer pessoa com quem nos encontrarmos, devemos pregar.

Isto não quer dizer que cada um dos salvos precisa ir, literalmente, ao mundo inteiro e pregar, literalmente, a toda criatura — isto seria impossível. Mas devemos entender estas palavras como um alerta para não fazermos nenhuma discriminação. Não pode existir um lugar do mundo, do qual eu diga (ou pense): “Lá eu não quero ir pregar”, e não deve existir nenhum tipo de pessoa do qual eu diga (ou pense): “Para ele eu não quero pregar”. Todas as nações precisam do Evangelho, e todo tipo de pessoas dentro destas nações precisa do Evangelho. Seja rico ou pobre, religioso ou ateu, honesto ou criminoso, honrável ou imundo, devemos estar dispostos a pregar a todos.

Portanto, devemos pregar (com toda a solenidade e autoridade que esta palavra indica) o Evangelho (as boas novas da morte e ressurreição de Cristo) a todos (sem qualquer discriminação).

O Comissionador

“O Senhor, depois de lhes ter falado, foi recebido no céu, e assentou-Se à direita de Deus”.

Em Marcos, o Senhor que lhes comissiona é apresentado, na Sua glória, de duas formas diferentes:

a) Recebido no Céu. Este verbo está na voz passiva, e enfatiza a maneira como o Céu se alegrou em receber aquele que venceu na cruz. É interessante notar que a ascensão do Senhor Jesus é descrita de quatro formas diferentes no NT, como dois verbos na voz passiva e dois na ativa, sempre associados à palavra “Céu”. Quanto à viagem daqui da Terra até o Céu, lemos que Ele foi elevado ao Céu (Lc 24:51 — voz passiva), mas também que Ele foi ao Céu pelo seu próprio poder e autoridade (At 1:11 e I Pe 3:22, traduzido “subido”, ambos os verbos na voz ativa). Quanto à entrada dEle do Céu, ao final da viagem, lemos que Ele foi recebido no Céu (aqui e em At 1:11, ambos os verbos na voz passiva), mas também lemos que entrou no Céu (Hb 9:24, voz ativa). O NT deixa claro, portanto, estes dois lados da moeda: o Céu abriu as portas para aquele que o mundo rejeitou, e Ele, pelo Seu próprio poder e autoridade, entrou ali.

b) Assentou-Se. Nesta segunda parte da descrição do Senhor, novamente vemos a Sua autoridade. O Céu abriu as portas para recebê-lO, e Ele, entrando, assentou-Se à direita de Deus. Esta é uma afirmação muito clara da divindade do Senhor Jesus Cristo. Quando o anti-cristo se assentar no Templo de Deus, a Bíblia diz que ele estará com isto “querendo parecer Deus” (II Ts 2:4) — mas o próprio Cristo se assenta, não só no Templo, mas no Céu, à direita de Deus, com toda a autoridade e glória que só Deus pode ter.

Irmãos, é este o Senhor que nos manda pregar: aquele que foi pregado numa cruz e morreu pelos nossos pecados — mas também aquele para quem os Céus abriram as suas portas, aquele que entrou vitorioso no Seu lar e assentou-se no Seu próprio trono, o trono de Deus. Aquele do qual diz o Sl 24: “Levantai, ó portas, as vossas cabeças, levantai-vos, ó entradas eternas, e entrará o Rei da glória”.

O Rei da glória, antes de entrar pelos portais eternos e assentar-Se à destra do Deus eterno, nos mandou pregar o Evangelho. Estamos obedecendo?

A companhia

“Cooperando com eles o Senhor, e confirmando a palavra com os sinais que seguiram. Amém.”

Lemos que os discípulos obedeceram à comissão do Senhor: eles partiram, e pregaram por todas as partes. Enquanto obedeciam ao Senhor, tiveram o enorme privilégio de desfrutar da Sua cooperação — a cooperação do Rei da glória, assentado à destra de Deus! Em II Co 6:1, aprendemos que não apenas estes primeiros discípulos, mas todos quantos nos envolvemos no serviço glorioso de pregar o Evangelho (publicamente ou não), somos também cooperadores de Deus. Que privilégio imenso!

Além disto, lemos que o Senhor confirmou a palavra que eles pregavam, e fez isto através dos sinais que se seguiram. Sem tomar aqui o espaço necessário para desenvolver o assunto, convém lembrar que estes sinais seguiram aqueles primeiros discípulos, mas depois cessaram. Em I Coríntos (escrito mais ou menos no ano 55 a.D.) lemos dos dons sinais — porém Romanos cap. 12 e Efésios cap. 4, que foram escritos alguns anos depois, apresentam listas de dons espirituais (como I Coríntios), mas não incluem nenhum dom sinal nestas listas. E Marcos, escrevendo mais ou menos no ano 63 a.D., refere-se a estes sinais no passado (“sinais que se seguiram”, e não “que seguem”). Podemos deduzir que estes sinais cessaram antes do ano 60 desta nossa era.

Que o consolo destes versículos nos anime hoje: o Rei da glória nos manda pregar, mas Ele não nos deixa sozinhos — Ele mesmo estará conosco, cooperando com todo trabalho feito para Ele.

O contexto

A ordem para pregar se encontra em Marcos, o Evangelho do Servo perfeito. Estamos servindo ao Senhor como Ele serviu? Seu serviço foi:

a) Abnegado (3:20 e 6:31) —tão dedicado que algumas vezes não tinha tempo para comer!

b) Atencioso. A palavra grega eutheos (“imediatamente”) ocorre 80 vezes no NT, e exatamente metade destas ocorrências estão neste pequeno livro de Marcos! Nenhum autor do NT usa tanto esta palavra quanto Marcos, descrevendo um serviço pronto feito por um Servo prestativo.

c) Amoroso. Mais do que os outros evangelistas, Marcos nos revela, muitas vezes, os sentimentos compassivos deste Servo perfeito (1:41; 6:34; 10:21, etc.).

Que nosso serviço seja semelhante ao serviço do nosso Mestre, o Servo perfeito.

Discipulai (Mateus)

Aqui também quero considerar quatro assuntos neste trecho: a comissão, a forma como Cristo, o Comissionador, é apresentado, a companhia do Senhor com os discípulos, e o contexto da comissão.

A comissão

“Ide, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo; ensinando-os a guardar todas as cosias que Eu vos tenho mandado”

Há três elementos desta comissão que podemos destacar:

a) O ato (discipular). “Fazei discípulos” é uma só palavra no texto original, e quer dizer “discipular”. Estamos conscientes de que a comissão do Senhor não foi apenas para pregarmos, mas também para discipularmos? Se estamos dando ênfase à pregação do Evangelho, ótimo — continuemos neste caminho. Mas tomemos cuidado para não estarmos tão ocupados com um aspecto da comissão à ponto de esquecermos do outro! Pecadores precisam ser salvos, mas salvos também precisam ser discipulados! Temos esta dupla preocupação aqui na comissão, e vemos o mesmo sendo ilustrado em Atos. No final da primeira viagem missionária, Paulo e Barnabé passam de novo pelas cidades onde haviam pregado o Evangelho, agora com a intenção de confirmar o ânimo dos discípulos (At 14). A segunda viagem missionária foi iniciada com a intenção de visitar os irmãos em todas as cidades onde já haviam anunciado a Palavra do Senhor (At 15).

Este deve ser o padrão ainda hoje: pregar o Evangelho aos perdidos, e ensinar aqueles que crêem.

b) O alcance (todas as nações). Repare que a abrangência desta parte da comissão é idêntica à que já consideramos: todas as nações. Nenhum preconceito.

A diferença nas expressões é interessante. Em Marcos, onde lemos do Servo perfeito de Deus, e ênfase está nas pessoas como indivíduos (devemos pregar a toda criatura). Aqui, onde lemos do Rei dos reis, a ênfase está nas nações. O Rei tem autoridade sobre todas as nações, não importa quão poderosas ou influentes elas possam ser.

c) Os acessórios (batizar e ensinar). O Senhor menciona duas coisas que estão relacionadas com este ato de discipular:

i) Batismo. O NT deixa bem claro que todos os salvos devem ser batizados. Batismo não é necessário para a salvação, mas é estranho, no contexto do NT, um salvo não batizado. Certamente podem haver exceções (falta de tempo, como no caso do ladrão na cruz, ou alguma deficiência física grave, etc.), mas a regra é clara: quem crê, seja batizado. Se você já nasceu de novo e não foi batizado ainda, permita-me perguntar: o que você está esperando?

ii) Ensino. O que vamos ensinar? Todas as coisas que o Senhor mandou! Certamente isto inclui o ensino dados pelos apóstolos do Senhor após a Sua ascensão, ensinos que estão registrados nas epístolas. Inclui o ensino sobre a igreja local (a necessidade de reunir ao nome do Senhor Jesus, separadamente das denominações, e os princípios que governam uma igreja local). Vivemos dias em que os homens não suportam a sã doutrina, e muitos dentre o povo de Deus estão indo atrás de ventos de doutrina. Ensinar toda a verdade não nos tornará populares, mas é o mandamento do Senhor.

O Comissionador

“É-me dado todo o poder no Céu e na Terra”

A palavra traduzida “poder” aqui refere-se a “poder” no sentido de “autoridade”, não de “capacidade”. A afirmação aqui não é que o Senhor consegue fazer qualquer coisa (uma verdade apresentada em outras partes da Bíblia), mas que Ele tem direito de fazer qualquer coisa.

Mateus é o Evangelho do Rei — nada mais apropriado, portanto, do que ver a autoridade que o Senhor apresenta para a Sua comissão. Quem é que nos manda fazer discípulos de todas as nações? Quem é este que tem autoridade para nos mandar interferir na cultura e nos costumes de todos os povos da Terra? Quem é este que Se coloca acima de todos os governos humanos? Ele é o Rei dos reis e Senhor dos senhores, aquele que recebeu toda a autoridade no Céu e na Terra. Não há ninguém que escapa da Sua autoridade —Ele controla tudo e todos. Ele foi colocado acima de todo o principado, e poder, e potestade, e domínio, e de todo o nome que se nomeia, não só neste século, mas também no vindouro, e tudo foi sujeito debaixo dos Seus pés (Ef 1:21-22).

Tal é a autoridade daquele que nos comissiona a ensinar todas as nações.

A companhia

“Eis que Eu estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos. Amém.”

Marcos apresenta o que aconteceu quando os discípulos obedeceram à comissão do Senhor, mas Mateus apresenta uma promessa do que vai acontecer (e está acontecendo).

O Senhor promete estar conosco sempre, todos os dias, até a consumação dos séculos. A promessa não era somente até o final da vida dos apóstolos, mas até o final desta dispensação — a promessa é para nós. Todos os dias: mesmo quando esquecemos desta promessa; mesmo quando parece que ela não está sendo cumprida; mesmo quando gostaríamos que ela falhasse. Todos os dias, o Senhor sempre estará conosco — que precioso!

É interessante contrastar esta promessa incondicional com a promessa condicional de Mt 18:20. Ambas tem uma notável semelhança, mas também uma diferença importante: as duas promessas dizem respeito à presença do Senhor conosco, mas a promessa de 28:20 é incondicional, enquanto a de 18:20 é condicional. Ou seja, individualmente, o Senhor está com cada um dos Seus, sempre, todos os dias. Coletivamente, porém, só podemos saber que o Senhor reconhece nosso ajuntamento, e está no nosso meio, se estivermos reunidos ao Nome dEle!

Será que realmente apreciamos o privilégio que temos em fazer parte de uma igreja local?

O contexto

Mateus é quem nos fala acerca da necessidade de discipular — por quê?

O contexto deste Evangelho é o reino dos céus (uma expressão que ocorre mais de 30 vezes aqui em Mateus, e nunca mais no NT). É o Rei que tem autoridade para nos enviar a outros reinos atrás de novos discípulos. Ele não reconhece as barreiras de cultura, língua e tradições — Ele quer discípulos de todas as nações.

Repare também que este é o único dos quatro Evangelhos que usa a palavra “igreja”. No cap. 16 ela é usada da Igreja (o Corpo de Cristo), e no cap. 18 de uma igreja local. É o desejo do Rei que o reino cresça através do desenvolvimento de igrejas locais, composta de discípulos. Uma das nossas principais responsabilidades aqui na Terra é conseguir discípulos, e ensiná-los a reunir unicamente ao nome do Senhor Jesus Cristo, separados das denominações.

Conclusão

Nestes dois trechos temos, portanto, uma única comissão, mas com dois elementos distintos. Aprendemos que o Servo perfeito nos manda pregar o Evangelho a todos, indistintamente, seguindo o Seu exemplo de serviço perfeito e abnegado. Aprendemos também que o Rei nos manda fazer discípulos de todas as nações, batizá-los e ensiná-los a obedecer tudo que Ele nos ensinou.

Estamos cumprindo esta comissão? As igrejas locais são caracterizadas por fervor evangelístico e zelo doutrinário? Cada um de nós, dependendo do dom que possuímos, irá se dedicar mais a uma ou outra destas tarefas, mas devemos reconhecer que ambas são igualmente importantes, e que cada igreja local deve preocupar-se com estes dois aspectos do seu serviço: pregar o Evangelho, e discipular os salvos.

Que Deus nos ajude nesta tarefa.



© W. J. Watterson

Dois detalhes sobre Isaías 53

Isaías 53 contém o quarto Cântico do Servo (que inclui os últimos três versículos do cap. 52). Qual seria o centro deste Cântico?