Tuesday, 4 November 2014

Acróstico (i)

Da série “Figuras de linguagem na Bíblia”. Leia também:


A palavra “acróstico” pode ser definida como “composição poética em que cada verso principia por uma das letras da palavra que lhe serve de tema.” Uma forma específica de acróstico é o acróstico alfabético, em que cada verso inicia com uma das letras do alfabeto, na ordem alfabética.

Existem três livros da Bíblia que contém acrósticos alfabéticos: o livro de Salmos contém sete destes acrósticos, Provérbios contém um (a descrição da mulher virtuosa no cap. 31), e Lamentações contém quatro.

É interessante e instrutivo examinar estas passagens das Escrituras, e apreciar a beleza da composição poética do livro divino. Antes, porém, precisamos formalizar uma pergunta que certamente passa pela mente da maioria de nós: por que Deus inclui estes detalhes na Sua Palavra? Alguns dirão que é mera coincidência, ou algo que não tem valor algum para nossa vida prática. “O que me interessa saber se a descrição da mulher virtuosa em Provérbios 31 é na forma de acróstico ou não?” pergunta o cristão prático; “O que importa são as lições espirituais do trecho, não a sua forma poética!”

Não há dúvida que o ensino das Escrituras é o principal; mas afirmar isto não responde à pergunta feita acima: por que Deus inclui tantos ornamentos linguísticos e estruturais na Sua Palavra? Antes de responder apressadamente à pergunta acima, repare que podemos ver o mesmo princípio divino [veja Nota 1] em outras áreas. Pense, por exemplo, na Criação. O ato de criar seguiu uma ordem bela e perfeita [veja Nota 2]; e essa simetria bela tem como única função (ao que me parece) ornamentar e embelezar. Deus criou as coisas nesta ordem não porque precisava ser assim, mas simplesmente porque Ele quis nos mostrar a beleza da ordem divina. Os luzeiros poderiam ter sido criados no segundo dia, por exemplo. Mas Deus, além de fazer um Universo perfeitamente funcional, o fez também seguindo um processo perfeitamente ordeiro.

Não só o ato de Criação, mas também a própria Criação manifesta esta ordem — o Universo, criado num processo tão belo e simétrico, é um Universo lindo. É perfeitamente funcional, mas é também perfeitamente lindo. As estrelas, os rios, o pôr-do-sol, as flores e os beija-flores — tudo é extremamente belo!

Assim também com a Palavra de Deus, um livro que revela perfeitamente a vontade de Deus, e que o faz duma forma tão bela. Deus escondeu muitas joias na Sua Palavra, algumas bem na superfície, outras mais escondidas. Quanto mais lemos a Bíblia, mais chegamos a essa conclusão: é um livro perfeito na sua funcionalidade e utilidade, mas também um livro perfeitamente belo, repleto de joias que mostram a beleza da ordem divina. Como diz o Salmo 19, a Criação manifesta a glória de Deus (vs. 1-6), e o Seu livro é igualmente perfeito (vs. 7-11).

Voltando à pergunta repetida acima: por que Deus inclui estes acrósticos na Sua Palavra? Não tenho certeza; talvez foi para dar um selo de autenticação divina a este livro; talvez foi para aquecer nossos corações e fazê-los transbordar em louvor a Ele. Não tenho certeza; mas tenho certeza que foi Ele próprio quem acrescentou estas pinceladas de beleza divina a este livro perfeitamente funcional. E se Ele assim fez, não posso deixar de procurar estas pinceladas. Não posso desprezar o que Ele achou por bem fazer.

Minha intenção em destacar estas coisas é estimular cada salvo a dedicar-se, mais e mais, ao estudo deste livro sublime. Como outros já disseram, este livro é tão claro que uma criança entende sua mensagem, mas é também tão profundo e cheio de perfeições que a mente mais privilegiada jamais ficará entediada diante deste vasto mar de sabedoria.

“Tenho visto fim [“limite”, RC] a toda a perfeição, mas o Teu mandamento é amplíssimo” (Sl 119:96).

Salmos acrósticos

Já mencionei que há sete Salmos acrósticos (alfabéticos), que podem ser divididos em dois grupos: quatro Salmos tem uma estrutura perfeita (Salmos 37, 111, 112 e 119), enquanto outros três tem uma estrutura alfabética bem visível, mas irregular (Salmos 25, 34 e 145). Esta divisão de grupos de sete em quatro e três (e não cinco e dois, ou seis e um) é extremamente comum na Bíblia, e testifica da sua perfeição. Convém acrescentar que muitos comentaristas consideram que os Salmos 9 e 10 formam, juntos, outro acróstico (porém com sete letras omitidas).

Salmo 37

A estrutura alfabética deste Salmo é destacada na ilustração abaixo.

Salmos 111 e 112

Um exemplo notável da beleza dos acrósticos bíblicos são os Salmos 111 e 112. Ambos contém dez versículos, mas vinte e dois versos (no sentido poético — uma linha de um poema). Cada um desses vinte e dois versos começa com uma letra do alfabeto hebraico (que só tem vinte e duas letras, diferentemente do nosso alfabeto), e na ordem exata do alfabeto (veja a ilustração abaixo).

Com isso percebemos que os dois salmos formam um par, e devem ser estudados juntos. Olhando mais de perto, percebemos que o Salmo 111 descreve Deus (Seu caráter e Sua conduta), enquanto que o Salmo 112 descreve o servo de Deus (seu caráter e sua conduta). Ambos os salmos começam com “Louvai ao Senhor” (literalmente, “Aleluia”), depois seguem um paralelo impressionante, que o leitor atento poderá ver comparando os dois salmos na ilustração abaixo. Olhe com cuidado para os salmos, e veja como o caráter e a conduta do servo de Deus devem refletir o caráter e a conduta do Seu Senhor.

Na ilustração também são destacadas duas palavras hebraicas diferentes que indicam coisas eternas: ‘ad e olam. Cada uma destas palavras ocorre três vezes no Sl 111 e duas vezes no Sl 112. Vale a pena estudar estas ocorrências.

Salmo 119

Quero destacar a estrutura perfeita deste salmo, sua extensão prolongada, e sua exposição profunda da Palavra de Deus.

Estrutura perfeita

O Salmo 119 é o mais perfeito dos Salmos alfabéticos, contendo cento e setenta e seis (8 x 22) versículos numa estrutura impressionante: cada grupo de oito versículos é dedicado a uma letra do alfabeto hebraico, numa sequência perfeita. Cada um dos primeiros oito versículos começam com alef. Os vs. 9 a 16 começam, todos, com bet; os próximos oito versículos (vs. 17 a 24) começam com guimel, e assim sucessivamente, até chegarmos aos últimos oito versículos do salmo (vs. 169 a 176), todos começando com a última letra do alfabeto hebraico, tav.

Extensão prolongada

O tamanho deste Salmo também impressiona; não há nada que se compare na Bíblia. Para perceber a singularidade do seu tamanho, é necessário lembrar que, diferentemente dos demais livros da Bíblia, nos livros de Salmos e Lamentações de Jeremias as divisões em capítulos não foram feitas depois da Bíblia ser escrita, mas fazem parte da sua estrutura original. A Bíblia foi escrita sem nenhuma divisão de capítulos ou versículos (a divisão em capítulos surgiu no século XIII) mas o livro de Salmos é diferente por ser composto de salmos avulsos, cada um sendo um poema completo em si mesmo. Por isso lemos de Paulo se referindo ao “Salmo segundo” (At 13:33). A diferença de tamanho entre capítulos da Bíblia é obra humana, mas o Salmo 119 chegou até nós no tamanho em que foi inspirado por Deus.

Levando isto em conta, repare que o Salmo 119 é maior do que qualquer outro Salmo (mais do que o dobro) e maior do que muitos livros da Bíblia. A lista abaixo apresenta em ordem crescente (baseado no texto em português) vinte e três livros na Bíblia que são, com certeza, menores do que o Salmo 119, e outro dois que são possivelmente menores: II e III João, Filemon, Judas, Obadias, Tito, II Tessalonicenses, Ageu, Jonas, Naum, Habacuque, Sofonias, II Pedro, I Tessalonicenses, II Timóteo, Joel, Colossenses, Rute, Filipenses, I João, Tiago, I Timóteo, I Pedro, Cantares e Miquéias.

Exposição Profunda

A estrutura do Salmo é magnifica. Sua extensão também impressiona. E o que dizer sobre sua exposição? Pode parecer contraditório, mas os cento e setenta e seis versículos deste Salmo tratam de um mesmo tema: a Bíblia!

A Massorá [veja Nota 3] traz, ao lado do v. 122, uma lista de dez palavras características do Salmo. Em Português, estas palavras são: “caminho, “testemunho”, “preceito” (ou “ordenança”), “mandamento”, “lei”, “juízo”, “justiça”, “estatuto”, e duas palavras hebraicas que são traduzidas “palavra” em Português. A Massorá diz que estas palavras correspondem aos Dez Mandamentos, e que o único versículo do Salmo onde não encontramos nenhuma delas é o v. 122.

É verdade que outros vem menos sinônimos das Escrituras neste Salmo. Scofield lista quatro versículos onde ele não encontra nenhuma referência à Bíblia (vs. 90, 121, 122 e 132). A. Clarke acrescenta o v. 84 aos quatro já mencionados. Mesmo concordando com Clarke, porém, veja que fato impressionante: dos cento e setenta e seis versículos do Salmo, apenas cinco não contém uma referência direta e clara à Palavra de Deus! F. J. Dake contou cento e noventa e oito referências à Bíblia neste Salmo!

Não há dúvida, portanto, que o Salmo 119 é, do começo ao fim, o Salmo das Escrituras. “Tanto espaço para o mesmo assunto!”, dizem alguns, e acusam o Salmo de tautologia (“vício de linguagem que consiste em dizer, por formas diversas, sempre a mesma coisa”; Aurélio).

A beleza, porém, se encontra não só nos contrastes entre coisas diferentes e grandiosas, mas também nas diferenças delicadas e sutis entre coisas do mesmo gênero. Como exemplo de que até mesmo a sabedoria humana reconhece isto, veja a Chaconne (de Bach), um dos movimentos de uma música clássica para violino. Consistindo em cerca de quatorze minutos de uma progressão simples repetida em dezenas de variações, é considerada uma das mais sublimes músicas já compostas pelo homem. Brahms, outro compositor de fama mundial, escreveu sobre a Chaconne: “Em uma pauta, para um instrumento pequeno, o homem compôs um mundo inteiro dos mais profundos pensamentos e mais intensos sentimentos”.

Só quem não aprecia beleza musical encontrará tautologia na Chaconne; só quem não aprecia a Palavra de Deus encontrará tautologia neste Salmo. As Escrituras são seu único tema, mas não há nada de repetitivo ou redundante; numa estrutura maravilhosa, Deus nos apresenta a perfeição divina que, dentre todos os livros que a Terra já viu, somente a Bíblia possui. “Tenho visto fim a toda a perfeição, mas o Teu mandamento é amplíssimo” (v. 96). Sem dúvida um livro como a Bíblia exige um Salmo tão perfeito na sua estrutura, tão prolongado na sua extensão, e tão profundo na sua exposição!

Salmos 25, 34 e 145

O Salmo 25 tem uma frase muito pequena na quinta letra do alfabeto (he), omite a décima-nona letra (cof) e repete a vigésima (reish), além de repetir a décima-sétima letra (pe) no final do Salmo. O Salmo 34, assim como o Salmo 25, tem a frase pequena na quinta letra (he) e a repetição da décima-sétima letra (pe) no final do Salmo. O Salmo 145 tem uma sequência quase perfeita, omitindo apenas a décima-quarta letra (nun). Veja estes detalhes destacados nas ilustrações abaixo.

Certamente há um propósito nestas irregularidades. Será que Deus quer chamar nossa atenção para algumas partes do Salmo? Confesso que não sei; mas sei que um dia entenderemos o “por quê” de todos estes detalhes maravilhosos das Escrituras, quando Ele mesmo nos revelar suas glórias!



Lamentações

Os cinco capítulos de Lamentações de Jeremias são cinco poemas. Os dois primeiros e os dois últimos contém vinte e dois versículos cada, enquanto o capítulo central contém sessenta e seis (22 x 3) versículos. O único destes cinco poemas que não é um acróstico alfabético é o cap. 5. Os caps. 1, 2 e 4 são acrósticos simples (cada versículo começa com uma letra do alfabeto hebraico), enquanto que o cap. 3 é um acróstico triplo (isto é, os primeiros três versículos começam com alef, os vs. 4, 5 e 6 começam com bet, etc).

Três dos acrósticos em Lamentações tem uma peculiaridade: invertem a ordem da 16ª e 17ª letra do alfabeto: 2:16, 3:46-48 (lembre do caráter triplo do acróstico neste capítulo), e 4:16 começam com a 17ª letra do alfabeto hebraico (quando, na ordem normal, deveria ser a 16ª letra), e os versículos que seguem (2:17, 3:49-51 e 4:17) começam com a 16ª letra. Ao invés de deduzir que esta inversão da ordem normal foi um descuido do profeta (uma dedução que nega a inspiração divina da Bíblia, e que não explica a repetição desta inversão em três dos poemas deste livro), é mais sábio procurar entender o por quê desta inversão. Se Deus escreveu estes poemas seguindo a ordem do alfabeto, e em três ocasiões inverteu a ordem normal (sempre com as mesmas duas letras), por que Ele fez isto? Estude estes versículos, e procure encontrar alguma coisa que é enfatizada pela mudança da ordem normal. Por exemplo, 2:16 mostra os inimigos do Senhor exultando porque chegou o dia que esperavam; mas o versículo seguinte (que, segundo a ordem do alfabeto, realmente vem antes) mostra que Deus intentou isto desde os dias da antiguidade. Os homens podem intentar mal contra o povo de Deus, e Deus muitas vezes permite que isto aconteça; mas sempre que os homens agem, Deus já havia, de antemão, previsto tudo!

Mesmo sem conseguirmos explicar tudo que estas inversões da ordem normal do alfabeto podem sugerir, cremos que há muitas lições preciosas neste pequeno detalhe das Escrituras.

Provérbios 31:10-31

A descrição da mulher virtuosa que encerra o livro de Provérbios é outra poesia que segue perfeitamente a ordem do alfabeto hebraico, sem nenhuma omissão ou inversão.

Alexander J. Higgins, no Comentário Ritchie do VT, diz que “aqui temos a descrição que Deus faz, de A a Z, de uma mulher de valor. É completa e contém todos os valores. Também é o ABC de Deus do caráter moral e da sabedoria da mulher. É o alfabeto e a linguagem da sabedoria”.

Conclusão

Que a perfeição e beleza das Escrituras nos cative mais e mais. Sua beleza tem um brilho duradouro, que supera as maiores obras humanas; e possivelmente a maior joia da sua coroa é o fato de que esta beleza não é superficial e vã, mas é o brilho que ornamenta palavras de vida eterna, palavras que nos revelam o próprio coração de Deus! “Abre Tu os meus olhos, para que eu veja as maravilhas da Tua lei” (Sl 119: 18).

© W. J. Watterson [Nota 1] Refiro-me ao princípio de acrescentar, às Suas obras, detalhes de beleza que, aparentemente, não tem nenhuma função prática; estão ali somente para embelezar e ornamentar. [voltar ao texto]

[Nota 2] Os seis dias da Criação (Gn cap. 1) apresentam uma simetria notável. No primeiro e no quarto dia, o elemento principal com que Deus trabalha é a luz; no segundo e no quinto dia, é a água; e no terceiro e no sexto, é a terra. Nos primeiros três dias Ele segue a sequência luz-água-terra, e nos próximos três dias a sequência é exatamente a mesma. Podemos dividir os seis dias da Criação em dois grupos, sendo que em ambos são usados os mesmos três elementos: luz, água e terra, na mesma ordem. E podemos comparar esta criação em duas etapas com a descrição dupla da Terra no v. 2: “sem forma e vazia”. Nos primeiros três dias, Deus está dando forma à Terra; nos três dias seguintes, Ele está enchendo-a. [voltar ao texto]

[Nota 3] Os mais antigos manuscritos do Velho Testamento têm, além do texto das Escrituras (em duas ou mais colunas), diversas linhas escritas em letras menores, nas margens superior e inferior e nas laterais de cada página. Estas notas (que não fazem parte do texto original das Escrituras) são chamadas de Massorá. Foram compiladas pelos Massoretas (eruditos judeus que viveram mais ou menos do século VI ao X) com a finalidade de evitar erros nas cópias das Escrituras. Estas notas não são comentários ou explicações sobre o texto, mas fatos e detalhes: a quantidade de palavras e a palavra central de cada livro, ocorrências de certas palavras, etc. Cada vez que o VT era copiado por um escriba, a cópia era verificada através dos dados da Massorá, e se houvesse alguma discrepância, a cópia era destruída integralmente! [voltar ao texto]

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