Da série “Figuras de linguagem na Bíblia”. Se desejar, leia primeiro a Introdução a esta série de artigos.
Introdução
As duas figuras que servem de título para este artigo merecem ser consideradas juntas, pois uma complementa a outra. A primeira (assíndeto) pertence ao grupo de figuras elípticas (caracterizadas por omissão), e a segunda (polissíndeto) ao grupo das figuras pleonásticas (caracterizadas por acréscimo).Entre as muitas ocorrências destas figuras na Bíblia, uma se destaca: nosso Senhor usou ambas numa mesma ocasião, poucos minutos uma da outra, e relacionadas ao mesmo grupo de quatro palavras, na mesma ordem.
Comecemos, porém, definindo as figuras e tentando entender seu significado (isto é, por que são usadas).
Definindo as figuras
O dicionário Priberam dá as seguintes definições:- Assíndeto: “Supressão das conjunções coordenativas entre frases ou entre partes da oração e da frase”;
- Polissíndeto: “Repetição da mesma conjunção em frases ou constituintes seguidos”.
“Assíndeto” quer dizer, basicamente, “nenhuma conjunção” (“a” + “síndeto”), e “polissíndeto”, “muitas conjunções” (“poli” + “síndeto”).
Gramaticalmente, a forma normal de se apresentar uma lista de palavras é separá-las com vírgulas, usando a conjunção “e” somente antes da última palavra na lista. Por exemplo, na frase: “Três palavras que descrevem os tipos de figuras de linguagem são: omissão, acréscimo e alteração”, temos a forma normal de se escrever. Se usássemos a figura assíndeto, escreveríamos: “Três palavras que descrevem os tipos de figuras de linguagem são: omissão, acréscimo, alteração”, e com polissíndeto teríamos: “Três palavras que descrevem os tipos de figuras de linguagem são: omissão e acréscimo e alteração”.
Descrevendo suas finalidades
Não é difícil entender a diferença entre assíndeto e polissíndeto — mas qual a finalidade destas duas figuras de linguagem? Se pretendo desviar da norma padrão e usar um assíndeto ou polissíndeto, o que ganharei com isso?Podemos resumir as três formas de se apresentar uma lista de palavras da seguinte forma:
- A forma comum — Se queremos simplesmente apresentar os elementos que compõe uma lista, sem nenhum destaque ou ênfase especial, escrevemos como no primeiro exemplo dado na seção anterior (separando os elementos por vírgulas, e acrescentando a conjunção “e” antes do último elemento).
- Assíndeto — Se queremos dar destaque ao quadro geral apresentado pela lista, mais do que aos elementos individuais que compõe a lista, omitimos as conjunções. Assim o leitor não tem sua atenção distraída pelas muitas conjunções, e caminha mais apressadamente para o final da lista, onde poderá haver uma conclusão que o autor deseja destacar mais do que os elementos individuais da lista.
- Polissíndeto — Por outro lado, talvez o autor deseja destacar os elementos individuais que compõe a lista, mais do que o quadro geral. Neste caso, ele recorre ao polissíndeto. Ao encontrar a conjunção “e” repetida para cada palavra da lista, o leitor lê mais pausadamente, e dá mais atenção a cada uma das palavras individuais.
Resumindo: o assíndeto destaca a lista (o quadro geral), o polissíndeto destaca os elementos que compõe a lista.
É isto que dizem os gramáticos. Devo confessar que no meu dia-a-dia tal distinção é insignificante, e muitos que leem este pequeno artigo provavelmente estão na mesma situação que eu: falamos e escrevemos sem nos preocuparmos com estes pequenos detalhes. Mas os que entendem de gramática reconhecem a validade das figuras, e creio que o Espírito Santo, na perfeição da Sua sabedoria divina, teria também prestado atenção a este detalhe ao escrever a Bíblia. Se você encontrar um assíndeto ou polissíndeto neste blog, pode ser mera coincidência, ou pode ser que usei a figura num lugar inapropriado; mas encontrando uma destas figuras na Bíblia, você pode ter certeza de que ela está lá com um propósito específico, e que devemos prestar atenção à figura.
Destacando as figuras
Como mencionei acima, a Bíblia contém um exemplo impressionante de nosso Senhor usando estas duas figuras numa mesma ocasião. Em Lucas 14:1-24 o Senhor está na casa de um dos principais dos fariseus, e diz: “Chama os pobres, aleijados, mancos, cegos” (v. 13). Poucos versículos adiante, Ele diz: “Traze aqui os pobres e aleijados e mancos e cegos” (v. 21).O parágrafo acima contém a tradução literal dos dois versículos — as versões em português, infelizmente, não preservam as figuras usadas no grego nestes versículos. No original, a lista do v. 13 não contém nenhuma conjunção, enquanto que a lista do v. 21 usa a conjunção entre todas as palavras da lista.
Repare bem esta diferença. Na mesma ocasião (na casa de um dos principais dos fariseus) o Senhor Jesus apresenta, duas vezes, uma lista contendo exatamente os mesmos quatro adjetivos (“pobres, aleijados, mancos, cegos”), e na mesma ordem. Na primeira vez, porém, Ele não usa nenhuma vez a conjunção “e” (assíndeto), enquanto que na segunda vez, Ele usa a conjunção entre todas as palavras (polissíndeto).
A mesma lista, no mesmo lugar, para as mesmas pessoas, poucos minutos uma após a outra — mas apresentadas de forma diferente! A única coisa que mudou entre o v. 13 e o v. 21 é o contexto, por isso a importância de percebermos a figura de linguagem usada.
Na primeira vez que apresenta a lista, sem conjunções, o Senhor está apresentando um princípio para o nosso serviço; na segunda vez, apresentando a mesma lista, porém com todas as conjunções, o Senhor apresenta uma parábola sobre a nossa salvação.
Um princípio para o serviço
Nos vs. 7-14, a ênfase do Senhor Jesus é num princípio que deve governar a nossa vida e o nosso serviço para Ele. Este princípio é resumido no v. 11: “Qualquer que a si mesmo se exaltar será humilhado, e aquele que a si mesmo se humilhar será exaltado”. Este princípio geral é aplicado a duas situações diferentes: a alguém que é convidado, e a alguém que convida. O trecho apresenta um quiasma (outra figura de linguagem muito usada na Bíblia):- O princípio aplicado a quem é convidado (vs. 7-10)
- O princípio apresentado (v. 11)
- O princípio aplicado a quem convida (vs. 12-14)
Assim, na lista apresentada no v. 13, o Senhor não quer dar destaque a cada um dos quatro tipos de pessoas necessitadas que Ele menciona. A lição principal não é que, ao dar uma festa, preciso convidar uma pessoa pobre, outra aleijada, outra manca, e outra cega. O Senhor não usa as conjunções, de sorte que passamos rapidamente pela lista, e chegamos logo à conclusão: “Quando fizeres convite, chamas os pobres, aleijados, mancos, cegos, e serás bem-aventurado”. O Senhor está nos mostrando que devemos convidar pessoas que não podem nos recompensar (das quais os quatro tipos da lista são apenas um exemplo), sabendo que “na ressurreição dos justos” seremos recompensados. Não são apenas os pobres, aleijados, mancos, cegos que devemos convidar, mas qualquer um que não tenha condições de nos recompensar. É claro que podemos convidar outros também, mas o verdadeiro cristão terá prazer em ajudar aqueles que não podem retribuir o favor, e não simplesmente ajudar querendo alguma coisa em troca.
É assim que agimos?
Uma parábola sobre a salvação
Na parábola apresentada nos v. 15-24, temos uma figura da salvação, num contexto dispensacional. A parábola fala de dois convites bem distintos, e entre estes dois convites há quatro diferenças importantes:- O tempo dos convites: o segundo foi feito somente depois que o primeiro foi recusado;
- O tipo de convidado: primeiro foram pessoas nobres, depois os pobres, e aleijados, e mancos, e cegos;
- Os termos do convite: o primeiro convite dizia: “Vinde”, mas na segunda vez o servo foi ordenado a trazer alguns;
- O tratamento do convite: os primeiros recusaram, os segundos aceitaram.
É proveitoso contrastar esta parábola com a parábola semelhante registrada em Mt 22. Tanto lá quanto aqui encontramos a terceira de três parábolas contadas depois que os fariseus ficaram sem palavras. Compare a sequência dos acontecimentos:
Nas parábolas em si, há diversas diferenças importantes:
Parece que, em Mateus, a ênfase está naqueles que rejeitaram o convite e como o Senhor os trata (lemos dos homicidas sendo destruídos e das suas cidades sendo queimadas, e do homem sem veste nupcial sendo jogado fora), enquanto que aqui, a ênfase parece recair sobre aqueles que tomaram o lugar dos que rejeitaram (temos a descrição detalhada dos quatro tipos de pessoas convidadas na “segunda chamada”, e nenhuma menção da destruição dos primeiros). Ambas as parábolas falam de como Israel rejeitou o convite, e por isso os Gentios, indignos, foram convidados. Mateus destaca mais a rejeição de Israel, Lucas enfatiza o caráter indigno dos Gentios.
Comparando o ensino desta parábola com o que vimos na parte anterior, sobre o princípio que deve nos guiar em relação a convites, vemos como o Senhor também convida para a Sua ceia aqueles que não tem com que O recompensar.
Agora, repare como o polissíndeto usado pelo Senhor se encaixa perfeitamente neste contexto. O primeiro grupo de convidados, que representa Israel, é chamado somente de “convidados”. O segundo grupo, que representa os salvos desta dispensação, a Igreja, é descrito de quatro formas diferentes. Mas aqui o Senhor não omite as conjunções para nos ajudar a passar rapidamente por cima da lista; pelo contrário, Ele usa todas as conjunções possíveis, para nos forçar a caminhar lentamente por esta descrição triste, porém muito real, da nossa condição. Todos nós éramos, espiritualmente, pobres, e também aleijados (“mutilados”), e também mancos, e também cegos! Não são palavras genéricas que descrevem alguns de nós; todas elas se aplicam a todos nós antes da nossa conversão!
Meditando assim nos detalhes desta descrição, percebemos quanto ela combina com a realidade, e também quanto ela exalta o amor de Deus, que convidou para a Sua ceia pessoas pobres, e aleijadas, e mancas, e cegas! “Já sabeis a graça de nosso Senhor Jesus Cristo que, sendo rico, por amor de vós Se fez pobre; para que pela Sua pobreza enriquecêsseis” (II Co 8:9)
Descobrindo mais figuras
É impressionante ver como o Senhor mudou a forma de apresentar estas quatro classes de pessoas desprezadas, usando um polissíndeto poucos minutos depois de ter usado um assíndeto. As palavras não mudaram; os ouvintes eram os mesmos; a única coisa que mudou era o contexto. Na primeira ocasião o Senhor destaca as bênçãos daqueles que convidam os desprezados (não importa, realmente, que tipo de desprezado seja convidado), mas na segunda ocasião Ele enfatiza as características daqueles que Ele mesmo convidou. Na primeira lista não era necessário meditar nas qualidades específicas das pessoas (eram apenas alguns exemplos), por isso as conjunções são omitidas (assíndeto). Já na segunda lista, as qualidades específicas apresentadas são a razão principal da lista, por isso são usadas todas as conjunções possíveis. A sabedoria do Senhor ao falar, e a perfeição da inspiração do Espírito quando Lucas escreveu, nos impressionam.Em terminar este pequeno artigo, gostaria de fazer um alerta para aqueles que desejam descobrir mais exemplos de assíndetos e polissíndetos no NT: é necessário verificar suas conclusões pelo texto grego do NT, pois as versões em português muitas vezes escondem estas figuras de linguagem (como foi destacado no caso de Lucas cap. 14).
Se você não sabe ler grego, não se desespere. Eu também não sei, mas há muitos recursos disponíveis hoje em dia para ajudar-nos. Um exemplo é o site Gospel Prime que apresenta o texto grego do NT. Com um pouco de trabalho (e muita cautela para não chegar a conclusões precipitadas!) é possível procurar pela conjunção kai (“e” em português) e ver se ela está presente ou não no texto que você estiver estudando.
Se algum leitor precisar de alguma outra informação, pode entrar em contato comigo nos comentários abaixo.
Leia o próximo artigo nesta série: Zeugma.
© W. J. Watterson
No comments:
Post a Comment