Em janeiro de 2017 estive na Irlanda do Norte com minha família por algumas semanas, e os irmãos da igreja local que se reúne na Av. Cambridge, em Ballymena, me pediram para falar sobre alguns aspectos da vida de meu pai. Eles separaram uma de suas reuniões de sábado à noite (destinadas principalmente aos jovens) para esse propósito, e foi sugerido o título: “A fé dos quais imitai …” (Hb 13:7).
Tive sentimentos conflitantes sobre a reunião. Seria muito bom lembrar do meu pai na presença de irmãos que o amaram (muitos eram seus amigos desde antes dele vir para o Brasil em 1960) e, possivelmente, encorajar os jovens salvos na jornada cristã. Por outro lado, sua partida para a glória era muito recente, e ele ainda me fazia muita falta.
A fim de controlar minhas emoções, decidi escrever o que eu esperava dizer, e o artigo abaixo é o resultado desse empreendimento. Não é uma transcrição do que eu falei naquela noite, já que não o levei comigo à reunião (meu pai me ensinou a desfrutar da liberdade de pregar sem anotações). Além disso, quase toda a última parte (“A doutrina que endossou”) teve que ser omitida porque o tempo acabou. A reunião foi uma experiência muito emotiva para mim, então o “script” não foi seguido de forma muito rígida. Ainda assim, o artigo abaixo dá uma boa idéia da vida e do serviço do meu pai.
Eu o encontrei hoje no HD do meu computador enquanto procurava outra coisa, e decidi compartilhar, esperando que possa encorajar alguns no serviço do Senhor. Esta tradução foi gentilmente feita por Boanerges Assis, e revisada por mim (obrigado, Boanerges). Tomei a liberdade de adaptar alguns detalhes para fazer mais sentido aos leitores no Brasil.
Obrigado pela leitura; seus comentários serão bem-vindos.
A fé dos quais imitai …
Uma homenagem a Ronaldo Watterson
Cambridge Av, Ballymena, 07/01/2017
Leitura: “E procuras tu grandezas para ti mesmo? Não as procures” (Jeremias 45: 5).
“Combati o bom combate, completei a carreira, guardei a fé” (II Timóteo 4: 7)
Tenho nesta noite o grande privilégio e responsabilidade de lhes contar algo sobre a vida de meu pai, Ronaldo Watterson. Ele nasceu em Portrush em 1935, seu novo nascimento foi na mesma cidade em 1952 (aos 17 anos de idade), partiu de Portrush para o Brasil para servir ao Senhor em 1960 (aos 24 anos de idade), e foi chamado para a presença do Senhor em 30 de maio de 2016, alguns meses antes do seu 81º aniversário. Seus primeiros 24 anos foram vividos em Portrush; o restante de sua vida (exceto pelas visitas que fazia à Irlanda a cada cinco ou seis anos) foi gasto no Brasil, onde ele está enterrado.
Quero apresentar três aspectos diferentes de seu serviço no Brasil, com base nas três declarações feitas por Paulo no final de sua vida, que acabamos de ler. Em primeiro lugar, as dificuldades que enfrentou (“combati o bom combate”); em segundo lugar, a dedicação que ele evidenciou (“completei a carreira”); e em terceiro lugar, a doutrina que endossou (“guardei a fé”).
Mas antes que eu faça isso, gostaria de chamar sua atenção para as palavras que lemos em Jeremias: “E procuras tu grandezas para ti mesmo? Não as procures”. Há cinco ou seis anos, eu estava lhe perguntando sobre algumas decisões que ele tomara no passado. Ele me disse que as palavras do Senhor a Baruque, citadas acima, haviam falado muito com ele há algumas décadas, e ele havia aplicado estas palavras de uma forma muito real para si mesmo. Aqueles que acompanharam sua vida podem testemunhar que ele viveu a verdade incorporada nessas palavras. Ele estava feliz em ver o trabalho do Senhor prosperar, não importa quem recebesse o crédito. Ele sempre estava interessado em encorajar os jovens salvos na sua caminhada, sempre disponível para ajudar. Discreto e despretensioso, ele expunha a Palavra de Deus como poucos que conheci, mas nunca houve uma pergunta dirigida a ele, por mais simples que fosse, que ele não procurasse responder com cuidado e cortesia. Os salvos de todo o Brasil escreviam-lhe com suas perguntas, ou telefonavam para ele, e ele respondia a todos da melhor forma possível.
Por exemplo, alguns anos atrás, ele deu uma série de reuniões de ensino sobre o livro de Apocalipse numa igreja distante de onde ele morava. Devido ao número limitado de dias disponíveis, ele concordou em pregar oito vezes por dia, durante um fim de semana!
Quando um grupo de irmãos no centro do Brasil mostrou interesse em aprender mais sobre o que é uma igreja local, ele passou uma noite inteira estudando a Bíblia com um grupo de anciãos daquela igreja, desde o final da reunião (em torno das 21h00) até às 06h00 da manhã, viajando para casa no dia seguinte (uma viagem de doze horas de ônibus). E isso foi repetido algumas vezes ao longo de alguns anos.
À medida que consideramos sua vida, vou mencionar várias outras situações que confirmam que ele vivia a verdade dessa Escritura: “E procuras tu grandezas para ti mesmo? Não as procures”. Em uma era de narcisismo, quando muitas pessoas parecem pensar que o mundo gira em torno delas, e sua felicidade pessoal é seu principal objetivo, que as palavras do Senhor para Baruque sirvam também como um exemplo para cada um de nós. Quando tantos publicam nas mídias sociais cada detalhe de suas vidas, que possamos ser levados a apreciar o exemplo de um servo que se contentou em ser simplesmente um servo — como aquele grande Homem de Deus de I Reis capítulo 13, desconhecido, anônimo, não valorizado, mas desejando obedecer a Deus em tudo, apesar de suas limitações.
1. As dificuldades que enfrentou
O trabalho missionário é muitas vezes visto como uma vocação glamorosa, reservada para algumas pessoas especiais. Mas meu pai cria, e sempre estava pronto a destacar, que todo salvo no Senhor Jesus Cristo é um servo de Deus em tempo integral, e a única diferença entre um missionário e outros salvos é a fonte da sua renda. Ele acreditava que Deus tem um serviço específico para cada um de Seus filhos, e que cada salvo “deve tratar dos negócios do [seu] Pai” (parafraseando Lucas 2:49). Nos sete anos e meio que decorreram entre a sua salvação e a sua vinda para o Brasil, ele foi muito ativo no Evangelho, compartilhando séries de reuniões evangelísticas enquanto ainda estava envolvido em trabalho secular.
Alguns anos atrás, ele escreveu sobre sua conversão e chamado, e mencionou uma série de reuniões evangelísticas que ele teve com o irmão John Hawthorne em Liscolman, quando almas foram salvas (o Sr. Hawthorne sempre foi um amigo especial para ele).
Ouvi falar de uma série de reuniões evangelísticas que ele teve em Killykergan em 1957. Ele saía do serviço cada dia, buscava alguns rapazes que conhecia e os levava para as reuniões. Um querido irmão, que foi salvo alguns anos depois, disse-me esta semana que se lembra do esforço que meu pai empreendeu para levá-lo, e outros, às reuniões. Meu pai tinha um Bullnose Morris 8, e a estrada de Coleraine para Killykergan estava em processo de reparação na época — o irmão mencionou que ele ainda se lembra da viagem acidentada para as reuniões!
Meu tio também contou de reuniões numa casa em Ballywillan; no final de uma dessas reuniões, o carro do meu pai não deu partida, e teve de ser rebocado para casa. O problema foi descoberto mais tarde — era uma batata que alguém havia introduzido no escapamento do carro!
Incidentes como esse servem para ilustrar as dificuldades que ele experimentou ao servir o Senhor enquanto ainda era um funcionário consciencioso e eficiente da Dervock Co. Dificuldades que são comuns a todos os salvos que buscam servir ao Senhor, independentemente de qual seja o serviço para o qual Ele os capacitou. Muito antes de o Senhor o ter chamado para o Brasil, ele já estava servindo ao Senhor em sua terra natal. Como alguém me disse recentemente: “Ele partiu para o Brasil para continuar fazendo o que ele fazia aqui na Irlanda do Norte”.
Eu gostaria de mencionar, brevemente, algumas dificuldades que ele enfrentou que foram uma consequência direta de obedecer ao chamado do Senhor para servi-Lo no Brasil.
Deixando
Viajar hoje é muito fácil, e muitos jovens já visitaram terras estrangeiras. O mundo está se tornando um lugar familiar, onde costumes, comida, etc., mudam pouco de um lugar para outro. Em 1960, no entanto, as coisas eram muito diferentes. Meu pai sabia que, se ele obedecesse ao chamado do Senhor para servi-Lo no Brasil, ele precisaria deixar sua família e a igreja local em Portrush que ele amava tanto. Ele estava indo para uma terra com costumes diferentes, linguagem diferente e clima diferente. A viagem demorou seis semanas em um navio cargueiro. Cartas levavam semanas para chegar. Ligações telefônicas não eram uma opção.
Com 24 anos de idade, ele deixou para trás sua família, igreja local e carreira, tudo porque o Senhor o havia chamado. Isso custou-lhe muito. Muitos anos depois, ele escreveu que quando a convicção de que deveria servir o Senhor no Brasil começou a crescer dentro dele, inicialmente ele resistiu, porque não queria deixar Portrush. Ele amava a cidade, sua família morava lá, e especialmente, ele amava a igreja do Senhor naquela cidade. Até seus últimos dias, a menção de Portrush sempre fazia com que seus olhos se iluminassem! Mas o Senhor o tinha chamado — então ele deixou tudo para trás, e obedeceu ao Senhor.
E até o final de sua vida, ele sempre insistia que todos os salvos deveriam estar dispostos a fazer o mesmo. Não necessariamente ir a um país estrangeiro, ou deixar seu emprego — mas cada irmão e cada irmã é um servo de tempo integral do Senhor, e deve estar disposto a obedecer o plano do Senhor para sua vida, não importa o que isso nos custe. Não importa sua posição — um estudante na escola, uma mãe em casa, um empregado ou empregador — sirva fielmente o Senhor onde Ele o colocou, e nunca permita que nada (nem ninguém) se torne tão importante para você a ponto de impedi-lo de obedecer ao Senhor.
Aprendendo
Levou alguns anos no Brasil até ele aprender a língua e descobrir onde, neste vasto país, o Senhor queria que ele o servisse. Em 1964, quatro anos depois de chegar ao Brasil, ele casou com Janeta Maxwell, filha de missionários escoceses. Ele a conheceu cerca de catorze meses antes, e depois do casamento eles buscaram a orientação do Senhor sobre onde deveriam viver. Fechando portas em alguns lugares, e abrindo portas em outros, Deus os guiou até a região em que ambos serviram ao Senhor por quase cinquenta anos.
Quando finalmente decidiram que era no vale do rio Mogi Guaçu (“Grande Rio das Serpentes”), no estado de São Paulo, que o Senhor queria que O servissem, sete anos haviam se passado desde que meu pai chegara no Brasil. Muito do que aconteceu durante esses sete anos permanecerá para sempre no coração deles apenas. O Senhor certamente guia Seu povo, mas muitas vezes é através de vales profundos e sombrios, através de experiências preciosas para a memória particular do santo, mas que são guardadas nos recessos mais ocultos do coração (Jacó levantou quatro colunas para lembrá-lo de eventos importantes na sua vida, mas seu encontro mais íntimo com Deus, em Peniel, não precisava de coluna!). A saúde do meu pai sofreu muito durante este período, mas foi com muita confiança no Senhor que o jovem casal, com sua filha recém-nascida, finalmente se estabeleceu na região onde eles desfrutariam das bênçãos do Senhor por tantos anos.
Querido irmão ou irmã, você está feliz por saber que está onde o Senhor deseja que você esteja? O lugar onde você mora, o trabalho em que você está envolvido, a igreja da qual você faz parte — quem trouxe você para onde você está? Você pediu ao Senhor para guiá-lo e se submeteu à Sua orientação, ou você consultou apenas seu próprio coração (ou bolso)? Quão precioso saber que o Senhor tem guiado!
Vivendo
E os próximos quarenta e nove anos também podem ser descritos como “combatendo o bom combate”, pois embora o Senhor os tenha abençoado abundantemente, houve muito para os desencorajar.
Poucos anos depois de se mudarem para Descalvado (a cidade onde meu pai está enterrado), uma pequena igreja local foi estabelecida. Quem já tentou levar o Evangelho para uma nova região sabe que esse é um sinal muito claro da orientação e da ajuda do Senhor. Mas alguns irmãos não ficaram impressionados. Lembro-me de ouvir de um pregador de outra região do Brasil que passou por Descalvado; meu pai ficou muito feliz em ver alguns incrédulos chegando para ouvir o Evangelho naquela noite, mas a reação do pregador visitante foi bastante diferente. Ele disse: “Ronaldo, você está perdendo seu tempo aqui com esse punhado de pessoas! Venha para a nossa região, onde há igrejas estabelecidas, e pregue entre nós!” Que desanimador isto deve ter sido! Mas ele continuou o que fazia, dia após dia, ano após ano, sempre pregando a mesma mensagem do Evangelho, e aos poucos viu o Senhor estabelecer igrejas.
De 1969 a 1979, meus pais tiveram a companhia de Harry e Jean Reid, de Bangor, antes que estes se mudassem para o norte do Brasil. A igreja em Descalvado começou pouco depois, com nove salvos em comunhão. Eles inicialmente se reuniam em um salão de madeira em nosso quintal, mas no início de 1970 se mudaram para um novo salão de alvenaria que meu pai e o Sr. Harry construíram (embora eles nunca tivessem trabalho em construção, o salão que ergueram continua sendo usado até hoje).
Quatro anos depois, foi estabelecida uma igreja em Pirassununga, 40 quilômetros ao sul de Descalvado, e dois anos depois, em 12 de setembro de 1976, os salvos em Ibaté, a 60 quilômetros a oeste de Descalvado, começaram a partir o pão.
Ver essas igrejas sendo plantadas pela graça de Deus deve ter sido um grande incentivo, mas em outros lugares o progresso foi mais lento. Reuniões começaram em Porto Ferreira (uma cidade entre Descalvado e Pirassununga) em janeiro de 1970, há 47 anos. Foi construído um salão, e durante todos esses anos o Evangelho foi pregado todas as semanas naquela cidade, mas ainda não há uma igreja estabelecida ali. Almas foram salvas, fruto foi visto, mas era difícil firmar os santos. Alguns anos atrás havia somente três salvos reunindo em Porto Ferreira: um casal que havia sido salvo há muitos anos e uma jovem irmã. O casal tinha dificuldades em vir às reuniões aos domingos, devido a compromissos familiares, e muitas vezes as únicas pessoas presentes na reunião no Domingo à noite eram a jovem irmã e seus dois filhos pequenos (além de meus pais, ou algum outro irmão de uma igreja vizinha que vinha cooperar). Alguns de nós, irmãos mais novos, pensávamos que era hora de parar ali, e avançar em outra cidade. Porto Ferreira ouvia o Evangelho há décadas, e ainda não havia uma igreja local ali! Mas meu pai sempre nos lembrava que havia três salvos ali, e não podíamos simplesmente abandoná-los. Assim, as reuniões semanais continuaram, duas vezes por semana (terça e domingo à noite), sempre com ajuda externa. Meus pais estavam lá toda terça-feira, e muitas vezes aos domingos. E então, lentamente, as coisas começaram a progredir, e hoje estamos muito alegres em ver 12 [hoje são 13] pessoas salvas e batizadas naquela cidade, e os irmãos estão orando por orientação divina sobre o início de uma igreja local ali. Foi difícil continuar quando praticamente não havia interesse — mas se tivéssemos parado as reuniões naquela época, não teríamos visto o desenvolvimento do trabalho do Senhor lá. É importante prosseguir, e prosseguir prosseguindo!
Cerca de um ano antes da sua morte, meu pai teve a alegria de ver o início da oitava igreja local nesta região, na cidade de Aguaí, a 50 quilômetros a leste de Pirassununga. Estar presente hoje em uma conferência nesta região e ver 250 a 300 salvos reunidos para ouvir o ministério da Palavra de Deus é uma recompensa maravilhosa do trabalho que começou, de maneira tão simples, quase meio século atrás. Um casal esteve disposto a deixar suas famílias e carreiras para trás e seguir a direção do Senhor, sem saber de antemão onde Ele os levaria. Não foi fácil, mas com a ajuda de Deus combateram um bom combate, e nos deixaram um exemplo digno de ser seguido.
2. A dedicação que ele evidenciou
Uma coisa é começar bem; outra coisa é terminar bem. Quantas pessoas caíram pelo caminho e não completaram a carreira! Gostaria, então, de chamar sua atenção para uma carreira completada, como um exemplo para motivar todos nós em nosso serviço para o Senhor. Cinquenta e seis anos em um país estrangeiro, quase meio século em uma pequena região daquele país, perseverando até o fim.
Quando meu pai veio para o Brasil, ele veio para viver como brasileiro. Ele nunca teve a intenção de retornar à Irlanda do Norte para se aposentar, ou de enviar seus filhos para lá. Ele costumava dizer que pretendia ser enterrado no Brasil. Embora minhas irmãs e eu temos cidadania britânica, sempre nos consideramos brasileiros — é assim que fomos criados. A propósito, isso não é uma crítica a missionários que seguiram um caminho diferente na vida deles; meu pai acreditava firmemente que cada pessoa tem seu próprio chamado do Senhor, e as circunstâncias específicas de onde viver e onde servir ao Senhor são assuntos muito pessoais. Ele fez o que considerou que o Senhor queria que ele fizesse, sem achar que todos deveriam fazer o mesmo. Ele seguiu o exemplo estabelecido por meus avós maternos, William e Leila Maxwell, que em 1938 deixaram a Escócia para servir ao Senhor no Brasil — eles moraram aqui até morrerem, e ambos foram enterrados no Brasil. Meu pai também passou a vida no Brasil e viveu servindo o Senhor naquele canto da vinha que Deus escolheu para ele.
Seu trabalho aqui pode ser dividido em três categorias principais: pregação do Evangelho, ensino dos salvos, e impressão de literatura cristã.
Pregação
Meu pai tinha amor pelas almas e pelo Evangelho, e usava qualquer oportunidade disponível para apresentar as boas novas da salvação. De porta em porta, ao ar livre, no rádio, nas casas, em salões portáteis de madeira, em tendas, nas reuniões semanais, em séries de reuniões evangelísticas — o importante era pregar o Evangelho.
E ele não se esquivava de qualquer aspecto do trabalho. Ele sujava as mãos ajudando a montar a Tenda, ou até mesmo construindo salões. Embora seus estudos profissionais fossem na área de contabilidade e auditoria, não em tijolos, ainda assim ele aprendeu a ser um pedreiro aqui no Brasil, e há vários salões em nossa região que ele ajudou a construir. Ele ficava tão satisfeito distribuindo os hinários à porta da Tenda como sendo o pregador, e nenhum aspecto do trabalho era muito servil para ele.
Um dos exemplos mais impressionantes do fruto desses trabalhos é a salvação do Sr. Belmiro. Ele foi uma pessoa violenta antes da sua conversão, entregue à bebida. Sem família aqui no mundo, ele foi acolhido por um irmão na igreja em Descalvado, e foi salvo pela graça de Deus. A mudança que o Evangelho fez nele é inacreditável. Hoje ele tem mais de 80 anos, e foi salvo há mais de 40 anos. Alguns anos atrás ele se mudou para a cidade de Leme para pregar o Evangelho, e o Senhor estabeleceu uma igreja naquela cidade por intermédio dele. No ano passado, ele começou a visitar uma cidade vizinha, Conchal, e encontrou algumas portas abertas. Ele é um excelente evangelista pessoal, e continua servindo fielmente ao Senhor. Alguns anos atrás, o principal líder político em Descalvado parou meu pai na rua e disse: “Ronaldo, não sei o que você fez com Belmiro naquela ‘igrejinha’ sua, mas deixe-me dizer uma coisa: anos atrás nós tínhamos vergonha de dizer que Belmiro era cidadão de Descalvado; hoje, temos orgulho dele!” Somente o Evangelho pode mudar tanto um homem, e meu pai gastou sua vida no Brasil porque acreditava no poder do Evangelho.
Devo ressaltar que meu pai não só pregava o Evangelho; ele também nos deu um exemplo da importância de pregar. Ele estava sempre olhando ao redor, consciente da necessidade nas cidades vizinhas, e sempre vendo novos campos que precisavam ser semeados. Vários salvos em nossa região foram influenciados pelo seu exemplo, e foram usados por Deus para levar o Evangelho a outras cidades. Belmiro, a quem acabo de mencionar, é um exemplo, e a igreja em Leme é um testemunho de seus trabalhos.
Outro jovem casal da igreja em Pirassununga seguiu o mesmo exemplo. Alguns anos atrás se mudaram para uma cidade vizinha, e começaram reuniões em sua casa. Depois, alugaram um pequeno salão e tiveram uma série de reuniões evangelísticas, com a ajuda de meu pai e outros irmãos. Hoje, há uma igreja naquela cidade.
Um casal da igreja em St. Cruz das Palmeiras teve uma experiência semelhante. O marido teve que se mudar para uma cidade a cerca de 100 quilômetros de distância por causa de seu trabalho, e eles também abriram as portas da sua casa para a pregação do Evangelho —há uma reunião semanal em sua casa, e alguns já professam crer.
É assim que os salvos naquela pequena parte do Brasil aprenderam o que é pregar o Evangelho, e é um exemplo digno de ser seguido.
O mal de Parkinson com a qual meu pai lutou nos últimos vinte anos de sua vida afetou seu corpo e sua mente, mas nunca tirou dele este amor pelo Evangelho. Em janeiro de 2016, apenas quatro meses antes de sua morte, houve três semanas de reuniões evangelísticas em Porto Ferreira, cinco noites por semana, a cerca de 20 quilômetros de onde meus pais viviam — e eles estiveram presentes em todas as reuniões. Pelo fato de perder sua capacidade de concentração (culpa do Parkinson), ele precisou parar de pregar — mas ele ainda participava em oração, e mesmo nos dias em que estava mais fraco, fazia questão de estar presente. Naquela série de reuniões em Porto Ferreira, vê-lo sair do carro todas as noites (com dificuldade, devido às dores nas costas e nas pernas), e sentar-se nos bancos duros de madeira, falava mais alto que centenas de sermões. Um bom sermão é uma coisa maravilhosa — um bom exemplo vale muito mais!
Pastoreio
Meu pai também trabalhou duro para fortalecer as igrejas que o Senhor plantou, e para ajudar jovens salvos a amadurecer. Um irmão que vive a cerca de 600 quilômetros de nós viajou para nos ver quando meu pai morreu. Ele veio para nos contar o quanto ele devia ao ensino paciente do meu pai, quando ele era um jovem salvo. Ele nos disse que a maioria dos homens teria desistido dele, mas ele devia sua maturidade espiritual à paciência com que meu pai o ensinara.
Há alguns homens que nos amedrontam com seu conhecimento: meu pai tinha a paciência de ouvir as perguntas das pessoas, e a humildade de não considerar suas perguntas como simples demais para merecerem uma resposta.
Ainda me lembro, quando eu era um menino de 12 ou 13 anos, indo para o escritório dele um domingo à tarde para perguntar sobre os primeiros versos de Romanos cap. 10. A solução mais simples teria sido dar-me a resposta (que era bastante simples), mas em vez disso, ele me perguntou: “O que você acha?” Eu disse o que achava, e em vez de simplesmente dizer: “Você está errado, aqui está a resposta certa”, ele apontou uma contradição no meu argumento, e me disse para examinar melhor o trecho. Fui embora e voltei alguns minutos depois — eu ainda estava errado. Lá pela terceira ou quarta vez, finalmente cheguei à verdade. Sua paciência me encorajou (a mim, e a centenas de outro) a trazer minhas dúvidas a ele.
Ele também viajou extensivamente para ajudar outras igrejas. Desde quando me lembro, seus carros rodavam mais de 60 mil quilômetros por ano (5 mil quilômetros por mês) — alguns anos mais, alguns anos menos, mas sempre em torno dessa média. Na região em que vivemos existem hoje oito igrejas locais, cuja distância para Descalvado varia entre 20 e 90 quilômetros. Toda noite da semana ele estava numa localidade dessas, visitando algum irmão doente, ajudando nos estudos tipo “mesa-redonda”, pregando, ou apenas estando presente para encorajar os irmãos.
Ele também visitava igrejas mais distantes, algumas a centenas de quilômetros de Descalvado. Era seu costume dirigir para casa à noite após a última reunião (muitas vezes passando a noite toda na estrada). Lembro-me de uma Kombi velha que tínhamos, e que minha mãe havia equipado com cortinas em todas as janelas traseiras; meus pais colocavam um pequeno colchão na parte de trás da Kombi, e minhas irmãs e eu passávamos a noite dormindo nessas longas viagens.
Ele sempre gostou de poder ajudar os outros, especialmente os mais jovens, a crescer no conhecimento do Senhor e das Escrituras.
Impressão
Por causa de seu desejo de ajudar os outros a entender as Escrituras com mais clareza, meu pai se interessou por literatura desde o começo do seu tempo no Brasil. Ele gostava de mencionar como as circunstâncias específicas do trabalho do Senhor no Brasil tornavam a literatura especialmente atraente aqui:
- Tamanho: o Brasil tem pouco mais de 8,5 milhões de quilômetros quadrados — quase o tamanho da Europa toda (incluindo a Rússia europeia);
- Idioma: em toda essa área enorme, fala-se um só idioma, o português!
- Isolamento: há diversas igrejas e indivíduos muito isolados (separados por centenas, às vezes milhares, de quilômetros de qualquer outra igreja).
Dadas essas circunstâncias, a literatura pode ser muito útil no Brasil. Uma única edição de uma publicação pode beneficiar qualquer parte desse enorme país, com mais de 200 milhões de habitantes. Igrejas e indivíduos que raramente teriam contato com outros salvos que compartilham a mesma visão espiritual, podem se beneficiar por literatura enviada pelos Correios. E a literatura produzida para o Brasil também pode ser utilizada de forma proveitosa em Portugal, Angola e outros países de língua portuguesa.
Meus pais se dedicaram a isso desde o início. Lembro-me, na minha infância, de assistir fascinado ao trabalho de impressão em um antigo mimeógrafo de tinta (ou máquina de estêncil), imprimindo cópias de notas datilografadas para serem usadas no trabalho com crianças, ou para os salvos. Folhetos evangelísticos e cursos bíblicos também eram impressos. Com o passar dos anos, meu pai pagou gráficas para publicar vários pequenos livretes que escreveu, e um comentário sobre o livro de Apocalipse que circula até hoje.
Na década de 90, meus pais começaram um projeto muito ambicioso: a tradução dos Comentários Ritchie do Novo Testamento. O trabalho começou com máquinas de escrever. O primeiro volume a ser impresso, I & II Tessalonicenses, foi publicado no início de 1993. Depois progredimos para computadores e unidades de disquete, depois computadores mais modernos com discos rígidos. Finalmente, quinze anos após o início, em dezembro de 2008, eles tiveram a alegria de ver o último volume impresso, completando o NT: aproximadamente 5.700 páginas traduzidas, cuidadosamente corrigidas e publicadas. (Muitos irmãos e irmãs, no Brasil e no Reino Unido, ajudaram neste projeto — um trabalho de amor que custou muito, mas que ainda traz muitos frutos!)
Só a eternidade revelará quanto tempo, energia e recursos meu pai dedicou à preparação e distribuição de literatura sadia em português. Vocês moram [isto, dirigido aos irmãos na Irlanda do Norte] em uma terra onde bons livros estão disponíveis aos milhares, e muitas vezes não são apreciados. Mas a situação no Brasil é muito diferente, e livros bons e confiáveis são poucos. Que vocês possam apreciar o contexto abençoado em que vocês vivem, e continuar orando pela bênção do Senhor na literatura produzida no Brasil.
3. A doutrina que endossou
Paulo não apenas combateu um bom combate e completou a carreira; ele também guardou a fé. No texto grego, os três substantivos na frase vêm antes dos verbos. Uma tradução literal seria: “O bom combate combati, a carreira completei, a fé guardei”. Paulo não está falando sobre sua atitude de fidelidade (“permaneci fiel”), mas ele fala de fé objetivamente: “Guardei as coisas em que eu creio”. Ele não só continuou até o fim, mas ele fez isso defendendo as coisas em que ele cria.
Gostaria de terminar mencionando brevemente dois aspectos de “fé” do meu pai — coisas que eram preciosas para ele, e que ele procurou transmitir aos outros.
Ele amava o Senhor
Em primeiro lugar, é claro, estava seu amor por Deus, manifestado na Pessoa do Senhor Jesus Cristo. Essa foi a sua motivação para pregar o Evangelho — que Cristo fosse honrado na salvação de almas. Considerava-se um devedor para o Senhor que morreu por ele, e nenhum sacrifício era grande demais para o Salvador que deu a Sua vida pela nossa salvação.
Nos últimos dias, quando sua mente começou a enfraquecer, ele ainda se levantava quase todo Domingo para orar na Ceia. E seu louvor e ação de graças sempre era inteligente, doce e fervoroso. Na conferência em Buckna, há poucas semanas, fomos lembrados de que não precisamos de homens inteligentes — precisamos de homens espirituais — homens que honram o Pai, amam o Filho e são guiados pelo Espírito Santo. Que todos os jovens salvos busquem aprender a amar o Senhor cada vez mais, e viverem para a Sua glória.
Ele amava a igreja local
Por causa do seu amor pelo Senhor, meu pai amava a igreja local. Muitos queridos irmãos nas denominações não conseguem ver nenhum valor especial numa igreja local, porque olham as pessoas que compõem a igreja, ou o comportamento dessas pessoas. E vamos ser honestos — há muito em nosso meio para nos causar vergonha. Mas uma vez que um salvo entende que uma igreja local é única, não por causa das pessoas que ali se reúnem, ou por causa das doutrinas que procuram defender, ou por causa do testemunho coletivo das igrejas, mas simplesmente por causa do nome ao qual se reúnem — o nome do Senhor Jesus Cristo — uma vez que esta verdade é apreciada, ele nunca mais conseguirá ser parte de uma denominação.
Meu pai pregou e praticou a verdade da separação ao nome do Senhor Jesus Cristo. Mas eu quero chamar sua atenção, especialmente, para a maneira como ele praticou isto. Ele acreditava que, como um cristão reunido ao nome do Senhor Jesus Cristo, ele não podia participar de qualquer trabalho denominacional. Embora tenha sido convidado a pregar em denominações, ele nunca aceitou. E os irmãos denominacionais que visitaram Descalvado eram bem-vindos para sentar-se e observar tudo que era feito, mas não eram recebidos na comunhão da igreja (a menos que estivessem dispostos a deixar a sua denominação e reunir apenas ao nome do Senhor Jesus).
Talvez você diga: “Bom, e daí? Muitos fariseus mostram a mesma exclusividade em suas associações“. E eu concordo; mas o ponto que quero enfatizar não é simplesmente que meu pai pregava e praticava a separação, mas que ele o fazia com um espírito manso. Ele não se orgulhava de dizer: “Sinto muito, irmão, mas não posso reunir com você” — pelo contrário, isto quebrantava o seu coração! Seu desejo era reunir com todos os salvos, mas ele amava o Senhor mais do que qualquer outra pessoa, e entendia que seguir o ecumenismo significaria abandonar a singularidade do nome do Senhor Jesus Cristo.
Conclusão
Procurei apresentar-lhes alguns detalhes da vida de um homem que se considerava um cristão normal, e para quem Deus era tudo. Ele nunca buscou grandeza para si mesmo. Ele combateu o bom combate, enfrentando voluntariamente oposição e críticas por causa do Senhor que amava; ele completou a carreira, permanecendo fiel até o fim; e ele guardou a fé, sempre intransigentemente (mas humildemente) defendendo as verdades que eram preciosas para ele. Ele nunca aceitou nenhuma glória humana — ele se alegrava em trazer glória e honra ao Senhor, não a si mesmo.
Como eu disse no início desta reunião, vivemos em dias em que todos pensam primeiro em si mesmos. Que possamos ser encorajados, pelo exemplo do meu pai, a seguir as palavras do corinho que ele amava tanto, que define “alegria” como significando “Jesus primeiro, eu por último, e os outros no meio”.
[Esta última frase precisa de uma explicação para os leitores brasileiros. “Alegria”, em inglês, é “joy”. O corinho brinca com as iniciais desta palavra: Jesus Others Yourself (Jesus, Outros, Você mesmo). A palavra “joy” tem o “J” (de “Jesus”) em primeiro lugar, o “Y” (de “yourself”, “você mesmo”) em último, e o “O” (de “Others”, “outros”) no meio. Assim, diz o corinho, “joy” (“alegria”) significa colocar o Senhor Jesus em primeiro lugar, os outros em segundo lugar, e você em último.]
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