Thursday, 3 July 2014

A grande comissão

Uma breve consideração sobre a comissão do Senhor Jesus Cristo, registrada em dois dos Evangelhos. Baseada em uma pregação numa conferência alguns anos atrás.

Leitura: Mateus 28:18-20 e Marcos 16:15-20



Os versículos acima apresentam aquilo que é chamado de A Grande Comissão — a última ordem do Senhor Jesus Cristo aos Seus servos antes de deixar este mundo. Certamente devemos prestar atenção ao que Ele disse, e nos familiarizarmos bem com esta comissão.

Em primeiro lugar, repare que esta comissão tem dois componentes distintos, cada um apresentado por um dos evangelistas. Em Mateus lemos: “Ide, fazei discípulos de [literalmente, “discipulai”] todas as nações”, e em Marcos: “Ide por todo o mundo, pregai o Evangelho a toda a criatura”. As duas ocorrências do verbo “ide” nestes dois trechos estão no particípio (no grego), e os únicos verbos que estão na voz imperativa nestas duas comissões são “fazei discípulos [discipulai]” em Mateus e “pregai” em Marcos. Hoje em dia ouvimos muita ênfase sendo colocada no verbo “ide”, mas precisamos lembrar que, apesar de toda a importância de irmos ao mundo inteiro, a ênfase nestes dois trechos não é no “ir”, mas no “pregar” e “discipular”.

A comissão, portanto, é dupla, e poderia ser traduzida assim: “Indo por todo o mundo, pregai o Evangelho a toda a criatura, e discipulai todas as nações”. Mateus apresenta um aspecto dela (o discipulado), Marcos outro (a evangelização), e os outros dois evangelistas a omitem totalmente.

Estas diferenças entre os quatro evangelistas são de suma importância para entendermos corretamente a mensagem de cada um destes relatos inspirados. São quatro retratos da mesma Pessoa e da mesma vida, mas vistos de quatro pontos de vista diferentes. Muitos já tem comparado os quatro relatos com os quatro seres viventes de Ezequiel cap. 1 e Apocalipse cap. 4, seguindo a mesma ordem apresentada em Apocalipse:

  • O primeiro era semelhante a um leão, um símbolo de realeza (Ap 5:5). Em Mateus, Cristo é apresentado como o Rei de Israel.
  • O segundo era semelhante a um bezerro, figura de serviço (I Co 9:9; Pv 14:4). Em Marcos, Cristo é apresentado como o Servo perfeito.
  • O terceiro animal tinha o rosto de homem, lembrando-nos da compaixão humana (Os 11:4). Lucas, o médico amado, nos apresenta o Homem perfeito.
  • O quarto era semelhante a uma águia voando, lembrando-nos daquilo que é do Céu, alto demais para a nossa compreensão (Pv 30:18-19). João nos apresenta a perfeição do Filho de Deus.

Por que Deus nos revelou o Seu Filho assim? Como Andrew Jukes escreve, isto facilita a nossa compreensão da multiforme beleza do nosso Senhor. Com nossa visão limitada, só conseguimos ver as diferentes cores que compõe um feixe de luz quando um prisma é usada para separar estas cores uma das outras. Assim o Senhor, conhecendo a nossa limitação, nos deu estas quatro revelações complementares do Seu Filho. Na glória dos Céus poderemos vê-lO como Ele é, mas hoje é necessário termos estes retratos diferentes. O jardim do Éden, com suas condições perfeitas, podia comportar um rio. Mas quando aquele rio saia do Éden e alcançava as terras comuns que rodeavam o Jardim de Deus, era necessário que ele se dividisse em quatro braços. Assim também com Cristo.

Outro rio do VT nos ajuda aqui. Em Ez 47 lemos de um rio que saia do Templo e atingia o deserto, levando vida e bênção a todos. Quatro vezes Ezequiel é chamado a atravessar o rio, que vai se tornando progressivamente mais profundo. Assim Mateus apresenta um retrato do Senhor que é mais simples de compreender: Ele é o Rei, exatamente como os judeus esperavam que seu Messias fosse. Marcos, falando-nos de como o Rei se fez Servo, apresenta algo que confunde o ser humano — temos dificuldade de entender um amor que faz alguém se humilhar tanto. Em Lucas, porém, as águas são mais profundas: o Rei eterno não se fez apenas servo, Ele tomou a forma humana. Quem pode compreender o mistério da encarnação? Quando chegamos em João, porém, encontramos aquele “rio que eu não podia atravessar”, como escreve Ezequiel. João nos revela detalhes do relacionamento divino entre o Pai e o Filho que estão ausentes nos outros Evangelhos, e nos levam até às portas do Céu.

Lembrando que cada um dos Evangelistas apresenta a mesma história, mas de pontos de vistas diferentes, devemos prestar atenção aos diferentes aspectos da comissão do Senhor Jesus que são apresentados por Mateus e por Marcos. É uma comissão só, com dois componentes principais (evangelizar e discipular) — mas não é à toa que esta única comissão é apresentada em dois relatos bem distintos.

Consideremos, então, resumidamente, os dois componentes da comissão do Senhor Jesus.

Pregai (Marcos)

Comecemos com Marcos, pois no nosso serviço para o Senhor “pregar” vem antes de “discipular”. Consideremos quatro coisas neste trecho: a comissão, a forma como o Comissionador (Cristo) é apresentado, a companhia do Senhor com os discípulos, e o contexto da comissão.

A comissão

“Ide por todo o mundo, pregai o Evangelho a toda criatura”

Há três elementos desta comissão que podemos destacar: o ato (pregar), seu assunto (o Evangelho) e seu alcance (todo o mundo e toda criatura).

a) O ato (pregai). O verbo que é usado aqui pelo Senhor quer dizer, literalmente, “proclamar como um arauto” (o dicionário de Thayer acrescenta: “sempre com uma sugestão de formalidade, solenidade e autoridade que exigem atenção e obediência”). Em tempos antigos, o arauto era um funcionário escolhido pelas autoridades para transmitir ao povo comunicados importantes. Vestido com vestes oficiais, ele lia, em voz alta e em locais públicos, aquilo que o governante lhe havia entregado para declarar. Ele não tinha a função de explicar o porquê daquela mensagem, nem exortar os ouvintes a obedecê-la — a sua responsabilidade era apenas proclamá-la.

“Pregar” não é dialogar, nem discutir, nem ensinar por métodos indutivos, mas é declarar, anunciar, dar um recado. Veja a diferença apresentada por Paulo em Gl 2:2: “E subi por uma revelação, e lhes expus o evangelho, que prego entre os gentios” (Gl 2:2). Aos irmãos ele “expôs” aquilo que “pregava” entre os gentios — “expor” e “pregar” não são sinônimos.

Irmãos, a pregação é o método escolhido por Deus para salvar pecadores (I Co 1:21). É claro que Ele também salva usando o Evangelho exposto de outras formas (como a conversa particular entre Filipe e o eunuco, por exemplo) — mas tanto I Co 1:21, quanto a comissão do Senhor, enfatizam a importância de se pregar o Evangelho! Há uma solenidade e autoridade associadas à pregação que faltam em outras formas de apresentar esta mensagem gloriosa, e toda igreja local deve dar importância à pregação. Os salvos podem (e devem) proclamar o Evangelho de todas as formas ao seu alcance: distribuindo folhetos, conversando em particular com aqueles que mostram interesse, etc., mas nunca em detrimento da pregação pública do Evangelho. Em outras palavras, nunca falte de uma reunião onde o Evangelho será pregado publicamente para distribuir folhetos, ou fazer um estudo, ou algo semelhante. Como igreja local, devemos dar prioridade à pregação do Evangelho, com reuniões semanais para este fim, e, sempre que possível, séries de reuniões de evangelização.

Num dia em que muitas igrejas estão preocupadas em tornar o Evangelho mais acessível, menos formal e solene, que nós possamos entender que a solenidade da pregação é enfatizada na comissão do Senhor Jesus Cristo.

b) O assunto (o Evangelho). É importante pregar; mas é fundamental pregar o Evangelho, não qualquer outra coisa! Temos um resumo do Evangelho em I Co 15:1:4: “Também vos notifico, irmãos, o Evangelho … Que Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras, e que foi sepultado, e que ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras”. Resumidamente, portanto, podemos afirmar que toda pregação do Evangelho irá apresentar a razão da morte de Cristo (Ele morreu por nossos pecados) e o resultado da morte de Cristo (Ele ressuscitou ao terceiro dia). É necessário mostrar que o pecado é tão grave que exigiu a morte do próprio Filho de Deus, e que a morte de Cristo é o sacrifício eficaz e suficiente para a nossa salvação (a ressurreição é a prova da eficácia da Sua morte, At 17:31). Como diz Rm 4:25, o Senhor Jesus Cristo “por nossos pecados foi entregue, e ressuscitou para nossa justificação”.

É assim que pregamos? Ou gastamos a reunião inteira exortando o pecador quanto à brevidade da vida, quanto à necessidade de crer, mas não apresentamos Cristo crucificado como o meio de salvação? Podemos dizer, como Paulo: “Nós pregamos a Cristo crucificado”?

Vamos pregar, e pregar o Evangelho!

c) O alcance (todo o mundo, toda a criatura). Duas expressões semelhantes que mostram a abrangência da pregação do Evangelho. Em todo lugar aonde formos, e para qualquer pessoa com quem nos encontrarmos, devemos pregar.

Isto não quer dizer que cada um dos salvos precisa ir, literalmente, ao mundo inteiro e pregar, literalmente, a toda criatura — isto seria impossível. Mas devemos entender estas palavras como um alerta para não fazermos nenhuma discriminação. Não pode existir um lugar do mundo, do qual eu diga (ou pense): “Lá eu não quero ir pregar”, e não deve existir nenhum tipo de pessoa do qual eu diga (ou pense): “Para ele eu não quero pregar”. Todas as nações precisam do Evangelho, e todo tipo de pessoas dentro destas nações precisa do Evangelho. Seja rico ou pobre, religioso ou ateu, honesto ou criminoso, honrável ou imundo, devemos estar dispostos a pregar a todos.

Portanto, devemos pregar (com toda a solenidade e autoridade que esta palavra indica) o Evangelho (as boas novas da morte e ressurreição de Cristo) a todos (sem qualquer discriminação).

O Comissionador

“O Senhor, depois de lhes ter falado, foi recebido no céu, e assentou-Se à direita de Deus”.

Em Marcos, o Senhor que lhes comissiona é apresentado, na Sua glória, de duas formas diferentes:

a) Recebido no Céu. Este verbo está na voz passiva, e enfatiza a maneira como o Céu se alegrou em receber aquele que venceu na cruz. É interessante notar que a ascensão do Senhor Jesus é descrita de quatro formas diferentes no NT, como dois verbos na voz passiva e dois na ativa, sempre associados à palavra “Céu”. Quanto à viagem daqui da Terra até o Céu, lemos que Ele foi elevado ao Céu (Lc 24:51 — voz passiva), mas também que Ele foi ao Céu pelo seu próprio poder e autoridade (At 1:11 e I Pe 3:22, traduzido “subido”, ambos os verbos na voz ativa). Quanto à entrada dEle do Céu, ao final da viagem, lemos que Ele foi recebido no Céu (aqui e em At 1:11, ambos os verbos na voz passiva), mas também lemos que entrou no Céu (Hb 9:24, voz ativa). O NT deixa claro, portanto, estes dois lados da moeda: o Céu abriu as portas para aquele que o mundo rejeitou, e Ele, pelo Seu próprio poder e autoridade, entrou ali.

b) Assentou-Se. Nesta segunda parte da descrição do Senhor, novamente vemos a Sua autoridade. O Céu abriu as portas para recebê-lO, e Ele, entrando, assentou-Se à direita de Deus. Esta é uma afirmação muito clara da divindade do Senhor Jesus Cristo. Quando o anti-cristo se assentar no Templo de Deus, a Bíblia diz que ele estará com isto “querendo parecer Deus” (II Ts 2:4) — mas o próprio Cristo se assenta, não só no Templo, mas no Céu, à direita de Deus, com toda a autoridade e glória que só Deus pode ter.

Irmãos, é este o Senhor que nos manda pregar: aquele que foi pregado numa cruz e morreu pelos nossos pecados — mas também aquele para quem os Céus abriram as suas portas, aquele que entrou vitorioso no Seu lar e assentou-se no Seu próprio trono, o trono de Deus. Aquele do qual diz o Sl 24: “Levantai, ó portas, as vossas cabeças, levantai-vos, ó entradas eternas, e entrará o Rei da glória”.

O Rei da glória, antes de entrar pelos portais eternos e assentar-Se à destra do Deus eterno, nos mandou pregar o Evangelho. Estamos obedecendo?

A companhia

“Cooperando com eles o Senhor, e confirmando a palavra com os sinais que seguiram. Amém.”

Lemos que os discípulos obedeceram à comissão do Senhor: eles partiram, e pregaram por todas as partes. Enquanto obedeciam ao Senhor, tiveram o enorme privilégio de desfrutar da Sua cooperação — a cooperação do Rei da glória, assentado à destra de Deus! Em II Co 6:1, aprendemos que não apenas estes primeiros discípulos, mas todos quantos nos envolvemos no serviço glorioso de pregar o Evangelho (publicamente ou não), somos também cooperadores de Deus. Que privilégio imenso!

Além disto, lemos que o Senhor confirmou a palavra que eles pregavam, e fez isto através dos sinais que se seguiram. Sem tomar aqui o espaço necessário para desenvolver o assunto, convém lembrar que estes sinais seguiram aqueles primeiros discípulos, mas depois cessaram. Em I Coríntos (escrito mais ou menos no ano 55 a.D.) lemos dos dons sinais — porém Romanos cap. 12 e Efésios cap. 4, que foram escritos alguns anos depois, apresentam listas de dons espirituais (como I Coríntios), mas não incluem nenhum dom sinal nestas listas. E Marcos, escrevendo mais ou menos no ano 63 a.D., refere-se a estes sinais no passado (“sinais que se seguiram”, e não “que seguem”). Podemos deduzir que estes sinais cessaram antes do ano 60 desta nossa era.

Que o consolo destes versículos nos anime hoje: o Rei da glória nos manda pregar, mas Ele não nos deixa sozinhos — Ele mesmo estará conosco, cooperando com todo trabalho feito para Ele.

O contexto

A ordem para pregar se encontra em Marcos, o Evangelho do Servo perfeito. Estamos servindo ao Senhor como Ele serviu? Seu serviço foi:

a) Abnegado (3:20 e 6:31) —tão dedicado que algumas vezes não tinha tempo para comer!

b) Atencioso. A palavra grega eutheos (“imediatamente”) ocorre 80 vezes no NT, e exatamente metade destas ocorrências estão neste pequeno livro de Marcos! Nenhum autor do NT usa tanto esta palavra quanto Marcos, descrevendo um serviço pronto feito por um Servo prestativo.

c) Amoroso. Mais do que os outros evangelistas, Marcos nos revela, muitas vezes, os sentimentos compassivos deste Servo perfeito (1:41; 6:34; 10:21, etc.).

Que nosso serviço seja semelhante ao serviço do nosso Mestre, o Servo perfeito.

Discipulai (Mateus)

Aqui também quero considerar quatro assuntos neste trecho: a comissão, a forma como Cristo, o Comissionador, é apresentado, a companhia do Senhor com os discípulos, e o contexto da comissão.

A comissão

“Ide, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo; ensinando-os a guardar todas as cosias que Eu vos tenho mandado”

Há três elementos desta comissão que podemos destacar:

a) O ato (discipular). “Fazei discípulos” é uma só palavra no texto original, e quer dizer “discipular”. Estamos conscientes de que a comissão do Senhor não foi apenas para pregarmos, mas também para discipularmos? Se estamos dando ênfase à pregação do Evangelho, ótimo — continuemos neste caminho. Mas tomemos cuidado para não estarmos tão ocupados com um aspecto da comissão à ponto de esquecermos do outro! Pecadores precisam ser salvos, mas salvos também precisam ser discipulados! Temos esta dupla preocupação aqui na comissão, e vemos o mesmo sendo ilustrado em Atos. No final da primeira viagem missionária, Paulo e Barnabé passam de novo pelas cidades onde haviam pregado o Evangelho, agora com a intenção de confirmar o ânimo dos discípulos (At 14). A segunda viagem missionária foi iniciada com a intenção de visitar os irmãos em todas as cidades onde já haviam anunciado a Palavra do Senhor (At 15).

Este deve ser o padrão ainda hoje: pregar o Evangelho aos perdidos, e ensinar aqueles que crêem.

b) O alcance (todas as nações). Repare que a abrangência desta parte da comissão é idêntica à que já consideramos: todas as nações. Nenhum preconceito.

A diferença nas expressões é interessante. Em Marcos, onde lemos do Servo perfeito de Deus, e ênfase está nas pessoas como indivíduos (devemos pregar a toda criatura). Aqui, onde lemos do Rei dos reis, a ênfase está nas nações. O Rei tem autoridade sobre todas as nações, não importa quão poderosas ou influentes elas possam ser.

c) Os acessórios (batizar e ensinar). O Senhor menciona duas coisas que estão relacionadas com este ato de discipular:

i) Batismo. O NT deixa bem claro que todos os salvos devem ser batizados. Batismo não é necessário para a salvação, mas é estranho, no contexto do NT, um salvo não batizado. Certamente podem haver exceções (falta de tempo, como no caso do ladrão na cruz, ou alguma deficiência física grave, etc.), mas a regra é clara: quem crê, seja batizado. Se você já nasceu de novo e não foi batizado ainda, permita-me perguntar: o que você está esperando?

ii) Ensino. O que vamos ensinar? Todas as coisas que o Senhor mandou! Certamente isto inclui o ensino dados pelos apóstolos do Senhor após a Sua ascensão, ensinos que estão registrados nas epístolas. Inclui o ensino sobre a igreja local (a necessidade de reunir ao nome do Senhor Jesus, separadamente das denominações, e os princípios que governam uma igreja local). Vivemos dias em que os homens não suportam a sã doutrina, e muitos dentre o povo de Deus estão indo atrás de ventos de doutrina. Ensinar toda a verdade não nos tornará populares, mas é o mandamento do Senhor.

O Comissionador

“É-me dado todo o poder no Céu e na Terra”

A palavra traduzida “poder” aqui refere-se a “poder” no sentido de “autoridade”, não de “capacidade”. A afirmação aqui não é que o Senhor consegue fazer qualquer coisa (uma verdade apresentada em outras partes da Bíblia), mas que Ele tem direito de fazer qualquer coisa.

Mateus é o Evangelho do Rei — nada mais apropriado, portanto, do que ver a autoridade que o Senhor apresenta para a Sua comissão. Quem é que nos manda fazer discípulos de todas as nações? Quem é este que tem autoridade para nos mandar interferir na cultura e nos costumes de todos os povos da Terra? Quem é este que Se coloca acima de todos os governos humanos? Ele é o Rei dos reis e Senhor dos senhores, aquele que recebeu toda a autoridade no Céu e na Terra. Não há ninguém que escapa da Sua autoridade —Ele controla tudo e todos. Ele foi colocado acima de todo o principado, e poder, e potestade, e domínio, e de todo o nome que se nomeia, não só neste século, mas também no vindouro, e tudo foi sujeito debaixo dos Seus pés (Ef 1:21-22).

Tal é a autoridade daquele que nos comissiona a ensinar todas as nações.

A companhia

“Eis que Eu estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos. Amém.”

Marcos apresenta o que aconteceu quando os discípulos obedeceram à comissão do Senhor, mas Mateus apresenta uma promessa do que vai acontecer (e está acontecendo).

O Senhor promete estar conosco sempre, todos os dias, até a consumação dos séculos. A promessa não era somente até o final da vida dos apóstolos, mas até o final desta dispensação — a promessa é para nós. Todos os dias: mesmo quando esquecemos desta promessa; mesmo quando parece que ela não está sendo cumprida; mesmo quando gostaríamos que ela falhasse. Todos os dias, o Senhor sempre estará conosco — que precioso!

É interessante contrastar esta promessa incondicional com a promessa condicional de Mt 18:20. Ambas tem uma notável semelhança, mas também uma diferença importante: as duas promessas dizem respeito à presença do Senhor conosco, mas a promessa de 28:20 é incondicional, enquanto a de 18:20 é condicional. Ou seja, individualmente, o Senhor está com cada um dos Seus, sempre, todos os dias. Coletivamente, porém, só podemos saber que o Senhor reconhece nosso ajuntamento, e está no nosso meio, se estivermos reunidos ao Nome dEle!

Será que realmente apreciamos o privilégio que temos em fazer parte de uma igreja local?

O contexto

Mateus é quem nos fala acerca da necessidade de discipular — por quê?

O contexto deste Evangelho é o reino dos céus (uma expressão que ocorre mais de 30 vezes aqui em Mateus, e nunca mais no NT). É o Rei que tem autoridade para nos enviar a outros reinos atrás de novos discípulos. Ele não reconhece as barreiras de cultura, língua e tradições — Ele quer discípulos de todas as nações.

Repare também que este é o único dos quatro Evangelhos que usa a palavra “igreja”. No cap. 16 ela é usada da Igreja (o Corpo de Cristo), e no cap. 18 de uma igreja local. É o desejo do Rei que o reino cresça através do desenvolvimento de igrejas locais, composta de discípulos. Uma das nossas principais responsabilidades aqui na Terra é conseguir discípulos, e ensiná-los a reunir unicamente ao nome do Senhor Jesus Cristo, separados das denominações.

Conclusão

Nestes dois trechos temos, portanto, uma única comissão, mas com dois elementos distintos. Aprendemos que o Servo perfeito nos manda pregar o Evangelho a todos, indistintamente, seguindo o Seu exemplo de serviço perfeito e abnegado. Aprendemos também que o Rei nos manda fazer discípulos de todas as nações, batizá-los e ensiná-los a obedecer tudo que Ele nos ensinou.

Estamos cumprindo esta comissão? As igrejas locais são caracterizadas por fervor evangelístico e zelo doutrinário? Cada um de nós, dependendo do dom que possuímos, irá se dedicar mais a uma ou outra destas tarefas, mas devemos reconhecer que ambas são igualmente importantes, e que cada igreja local deve preocupar-se com estes dois aspectos do seu serviço: pregar o Evangelho, e discipular os salvos.

Que Deus nos ajude nesta tarefa.



© W. J. Watterson

Wednesday, 11 June 2014

Zeugma

Da série “Figuras de linguagem na Bíblia”. Leia também:



A palavra grega zeugma quer dizer “jugo” (uma peça de madeira que une dois animais para que trabalhem juntos). Quando usada no campo da Retórica, duas definições divergentes são apresentadas:

  • A Wikipédia (em português) define zeugma como “figura de linguagem que consiste na omissão de um ou mais elementos de uma oração, já expressos anteriormente”. Muita ênfase é dada às palavras “já expressos anteriormente” (inclusive, este detalhe torna-se a diferença entre zeugma e elipse, segundo a Wikipédia). De acordo com esta definição, zeugma é simplesmente um tipo especial de elipse. Uma rápida pesquisa online revelará dezenas de sites de “ajuda a estudantes” em português que simplesmente repetem o que está no site da Wikipédia (a maioria, sem ao menos citar a fonte!).
  • Já a Wikipedia (em inglês) começa sua definição explicando que a palavra quer dizer “jugo”, e portanto define a figura como “uma única frase ou palavra unindo diferentes partes de uma frase”. A ênfase nesta definição não está na omissão de um ou mais elementos de uma frase, mas no fato de que, devido a esta omissão, um único elemento (um verbo, por exemplo) é ligado (como que por um jugo) a diferentes partes da frase.

Esta segunda definição é defendida por diversos autores (Bullinger, Harris — professor de inglês na Vanguard University) e dicionários (Oxford). Eles destacam a relação de dependência entre os elementos da frase que é criada pelo uso desta figura de linguagem, que combina com o significado original da palavra. É esta definição que apresento neste pequeno estudo.

Podemos distinguir pelo menos quatro tipos de zeugma usados na Bíblia. Veja abaixo uma definição resumida de cada um destes quatro tipos, com alguns exemplos.

Prozeugma (ou protozeugma)

Quando o elemento que serve de jugo se encontra no início da frase. Exemplo:

  • Lc 24:27 — “E começando por Moisés, e por todos os profetas, explicava-lhes o que dEle se achava em todas as Escrituras”. Gramaticalmente, “começando” só pode se aplicar a “Moisés”, que está no começo do Velho Testamento. O sentido implícito na frase é que Ele começou por Moisés, e depois continuou através dos profetas (a versão Atualizada acrescenta o verbo “discorrendo” em relação aos profetas). Realmente, porém, não há erro, e não é necessário acrescentar outro verbo. O sentido do que Lucas escreveu, inspirado pelo Espírito Santo, é claramente entendido, e a figura de linguagem chama a nossa atenção não para os verbos (“começando”, “discorrendo”), mas para os livros da Bíblia. A mensagem transmitida é que o Senhor poderia ter começado por qualquer livro do Velho Testamento, pois todos eles igualmente falam dEle. Em todos os profetas e em todas as Escrituras, o tema central sempre será o nosso amado Senhor Jesus Cristo.

Mesozeugma

Quando o elemento que serve de jugo se encontra no meio da frase. Exemplos:

  • Dt 4:12 — “… porém, além da voz, não vistes figura alguma”. A ordem das palavras no hebraico é: “figura nenhuma vistes a não ser a voz”. Parece errado, pois uma voz não se vê — se ouve! Parece que seria necessário acrescentar o verbo “ouvistes” — “figura nenhuma vistes, somente ouvistes a voz”. Na realidade, porém, temos aqui mais um exemplo da perfeição das Escrituras. Através da omissão do segundo verbo (“ouvir”), um único verbo (“ver”) governa a frase toda. Assim o fato de que nada foi visto é enfatizado, e o erro da idolatria (que está ligada com “imagens”, com aquilo que se vê) é claramente condenado.
  • Mc 13:26 — “Então verão vir o Filho do Homem nas nuvens, com grande poder e glória”. No grego, a ordem das palavras é: “… com poder grande e glória”, uma construção gramatical que, de acordo com Bullinger, é “peculiar”, fora do normal. Assim um único adjetivo (“grande”) é aplicado a dois substantivos (“poder” e “glória”) numa forma não-convencional, chamando nossa atenção para a grandeza do poder e a grandeza da glória da vinda do Senhor. Que dia maravilhoso será aquele!
  • I Co 3:2 — “Com leite vos criei, e não com carne”. O único verbo que rege os dois substantivos (“leite” e “carne”) quer dizer, literalmente, “dar de beber” (é traduzido “regar” nos vs. 6 e 7 deste mesmo capítulo), e aplica-se sempre a líquidos, não a sólidos. A tradução literal é: “Leite vos dei a beber, não carne”. A versão Trinitariana e a versão Corrigida tentam solucionar o aparente problema traduzindo “vos criei”, enquanto que a Atualizada acrescenta “vos dei” antes de “alimento sólido”. Mas não há erro — há, sim, uma figura de linguagem que confere beleza poética à frase, ao mesmo tempo em que destaca a diferença entre “leite” e “carne”. “Leite vos dei a beber, não carne” é muito mais belo, expressivo e enfático do que a forma rígida: “Leite vos dei a beber, não vos dei carne a comer”.

Hipozeugma

Quando o elemento que serve de jugo se encontra no final da frase. Exemplo:

  • At 4:28 — “… fazerem tudo o que a Tua mão e o Teu conselho tinham anteriormente determinado que se havia de fazer”. O verbo “determinar”, no final da frase, só se aplica ao conselho de Deus — o Seu conselho determinou, mas a Sua mão fez. A omissão do verbo “fazer” (ou “executar”) não é um erro — é uma figura de linguagem que destaca a harmonia tão perfeita que existe entre tudo que Deus planeja e tudo que Deus executa. Os homens podem planejar uma coisa, e depois executar outra (por falta de vontade de cumprir o plano original, ou por falta de capacidade); mas tudo aquilo que Deus determina, Ele cumpre. Em outras palavras: a mão e o conselho de Deus determinaram tudo, e a mão e o conselho de Deus fizeram tudo. Os dois (os planos e a execução destes planos) são inseparáveis.

Sinezeugma

Quando o elemento que serve de jugo se liga a mais de dois elementos. Exemplo:

  • Êx 20:18 — “E todo o povo viu os trovões e os relâmpagos, e o sonido da buzina, e o monte fumegando; e o povo, vendo isso …”. O único verbo usado (“ver”, no início e no final da frase) só poderia ser usado dos relâmpagos e do monte fumegando; os trovões e o sonido deveriam ser regidos pelo verbo “ouvir”. Porém se todos os verbos tivessem sido usados, a leitura seria muito menos expressiva. Da forma como está, temos um quadro impressionante com som (trovões e sonido de trombetas) e imagem (relâmpagos e monte fumegando) que impressionou o povo, e deveria nos impressionar até hoje, servindo a Deus “com reverência e piedade, porque o nosso Deus é um fogo consumidor” (Hb 12:28-29).

Conclusão

Que estes poucos exemplos extraídos da obra de Bullinger nos incentivem a pesquisar as Escrituras com mais cuidado e paciência, aproximando-nos da Bíblia com a convicção de que ela é perfeita em todos os seus detalhes. Quando encontramos algo que parece indicar uma relação desequilibrada entre os termos de uma frase, é bem provável que estamos diante de algum tipo de zeugma, e que há algum detalhe ali que o Espírito Santo quis enfatizar quando usou esta figura de linguagem.

Como pode um coração inteiro numa lágrima se expressar?
Por que uma pérola se esconde tão fundo no mar?
Senhor, ajude-me também Teu livro perscrutar!


© W. J. Watterson

Thursday, 8 May 2014

Assíndeto e Polissíndeto

Da série “Figuras de linguagem na Bíblia”. Se desejar, leia primeiro a Introdução a esta série de artigos.

Introdução

As duas figuras que servem de título para este artigo merecem ser consideradas juntas, pois uma complementa a outra. A primeira (assíndeto) pertence ao grupo de figuras elípticas (caracterizadas por omissão), e a segunda (polissíndeto) ao grupo das figuras pleonásticas (caracterizadas por acréscimo).

Entre as muitas ocorrências destas figuras na Bíblia, uma se destaca: nosso Senhor usou ambas numa mesma ocasião, poucos minutos uma da outra, e relacionadas ao mesmo grupo de quatro palavras, na mesma ordem.

Comecemos, porém, definindo as figuras e tentando entender seu significado (isto é, por que são usadas).

Definindo as figuras

O dicionário Priberam dá as seguintes definições:

  • Assíndeto: “Supressão das conjunções coordenativas entre frases ou entre partes da oração e da frase”;
  • Polissíndeto: “Repetição da mesma conjunção em frases ou constituintes seguidos”.

“Assíndeto” quer dizer, basicamente, “nenhuma conjunção” (“a” + “síndeto”), e “polissíndeto”, “muitas conjunções” (“poli” + “síndeto”).

Gramaticalmente, a forma normal de se apresentar uma lista de palavras é separá-las com vírgulas, usando a conjunção “e” somente antes da última palavra na lista. Por exemplo, na frase: “Três palavras que descrevem os tipos de figuras de linguagem são: omissão, acréscimo e alteração”, temos a forma normal de se escrever. Se usássemos a figura assíndeto, escreveríamos: “Três palavras que descrevem os tipos de figuras de linguagem são: omissão, acréscimo, alteração”, e com polissíndeto teríamos: “Três palavras que descrevem os tipos de figuras de linguagem são: omissão e acréscimo e alteração”.

Descrevendo suas finalidades

Não é difícil entender a diferença entre assíndeto e polissíndeto — mas qual a finalidade destas duas figuras de linguagem? Se pretendo desviar da norma padrão e usar um assíndeto ou polissíndeto, o que ganharei com isso?

Podemos resumir as três formas de se apresentar uma lista de palavras da seguinte forma:

  • A forma comum — Se queremos simplesmente apresentar os elementos que compõe uma lista, sem nenhum destaque ou ênfase especial, escrevemos como no primeiro exemplo dado na seção anterior (separando os elementos por vírgulas, e acrescentando a conjunção “e” antes do último elemento).
  • Assíndeto — Se queremos dar destaque ao quadro geral apresentado pela lista, mais do que aos elementos individuais que compõe a lista, omitimos as conjunções. Assim o leitor não tem sua atenção distraída pelas muitas conjunções, e caminha mais apressadamente para o final da lista, onde poderá haver uma conclusão que o autor deseja destacar mais do que os elementos individuais da lista.
  • Polissíndeto — Por outro lado, talvez o autor deseja destacar os elementos individuais que compõe a lista, mais do que o quadro geral. Neste caso, ele recorre ao polissíndeto. Ao encontrar a conjunção “e” repetida para cada palavra da lista, o leitor lê mais pausadamente, e dá mais atenção a cada uma das palavras individuais.

Resumindo: o assíndeto destaca a lista (o quadro geral), o polissíndeto destaca os elementos que compõe a lista.

É isto que dizem os gramáticos. Devo confessar que no meu dia-a-dia tal distinção é insignificante, e muitos que leem este pequeno artigo provavelmente estão na mesma situação que eu: falamos e escrevemos sem nos preocuparmos com estes pequenos detalhes. Mas os que entendem de gramática reconhecem a validade das figuras, e creio que o Espírito Santo, na perfeição da Sua sabedoria divina, teria também prestado atenção a este detalhe ao escrever a Bíblia. Se você encontrar um assíndeto ou polissíndeto neste blog, pode ser mera coincidência, ou pode ser que usei a figura num lugar inapropriado; mas encontrando uma destas figuras na Bíblia, você pode ter certeza de que ela está lá com um propósito específico, e que devemos prestar atenção à figura.

Destacando as figuras

Como mencionei acima, a Bíblia contém um exemplo impressionante de nosso Senhor usando estas duas figuras numa mesma ocasião. Em Lucas 14:1-24 o Senhor está na casa de um dos principais dos fariseus, e diz: “Chama os pobres, aleijados, mancos, cegos” (v. 13). Poucos versículos adiante, Ele diz: “Traze aqui os pobres e aleijados e mancos e cegos” (v. 21).

O parágrafo acima contém a tradução literal dos dois versículos — as versões em português, infelizmente, não preservam as figuras usadas no grego nestes versículos. No original, a lista do v. 13 não contém nenhuma conjunção, enquanto que a lista do v. 21 usa a conjunção entre todas as palavras da lista.

Repare bem esta diferença. Na mesma ocasião (na casa de um dos principais dos fariseus) o Senhor Jesus apresenta, duas vezes, uma lista contendo exatamente os mesmos quatro adjetivos (“pobres, aleijados, mancos, cegos”), e na mesma ordem. Na primeira vez, porém, Ele não usa nenhuma vez a conjunção “e” (assíndeto), enquanto que na segunda vez, Ele usa a conjunção entre todas as palavras (polissíndeto).

A mesma lista, no mesmo lugar, para as mesmas pessoas, poucos minutos uma após a outra — mas apresentadas de forma diferente! A única coisa que mudou entre o v. 13 e o v. 21 é o contexto, por isso a importância de percebermos a figura de linguagem usada.

Na primeira vez que apresenta a lista, sem conjunções, o Senhor está apresentando um princípio para o nosso serviço; na segunda vez, apresentando a mesma lista, porém com todas as conjunções, o Senhor apresenta uma parábola sobre a nossa salvação.

Um princípio para o serviço

Nos vs. 7-14, a ênfase do Senhor Jesus é num princípio que deve governar a nossa vida e o nosso serviço para Ele. Este princípio é resumido no v. 11: “Qualquer que a si mesmo se exaltar será humilhado, e aquele que a si mesmo se humilhar será exaltado”. Este princípio geral é aplicado a duas situações diferentes: a alguém que é convidado, e a alguém que convida. O trecho apresenta um quiasma (outra figura de linguagem muito usada na Bíblia):
  • O princípio aplicado a quem é convidado (vs. 7-10)
    • O princípio apresentado (v. 11)
  • O princípio aplicado a quem convida (vs. 12-14)
Qualquer que seja a nossa situação, o princípio que deve nos guiar é o mesmo: não procurarmos recompensa, nem riquezas, nem glória aqui na Terra, mas ocuparmos o último lugar, esperando que Deus, na glória futura, nos recompensará.

Assim, na lista apresentada no v. 13, o Senhor não quer dar destaque a cada um dos quatro tipos de pessoas necessitadas que Ele menciona. A lição principal não é que, ao dar uma festa, preciso convidar uma pessoa pobre, outra aleijada, outra manca, e outra cega. O Senhor não usa as conjunções, de sorte que passamos rapidamente pela lista, e chegamos logo à conclusão: “Quando fizeres convite, chamas os pobres, aleijados, mancos, cegos, e serás bem-aventurado”. O Senhor está nos mostrando que devemos convidar pessoas que não podem nos recompensar (das quais os quatro tipos da lista são apenas um exemplo), sabendo que “na ressurreição dos justos” seremos recompensados. Não são apenas os pobres, aleijados, mancos, cegos que devemos convidar, mas qualquer um que não tenha condições de nos recompensar. É claro que podemos convidar outros também, mas o verdadeiro cristão terá prazer em ajudar aqueles que não podem retribuir o favor, e não simplesmente ajudar querendo alguma coisa em troca.

É assim que agimos?

Uma parábola sobre a salvação

Na parábola apresentada nos v. 15-24, temos uma figura da salvação, num contexto dispensacional. A parábola fala de dois convites bem distintos, e entre estes dois convites há quatro diferenças importantes:

  • O tempo dos convites: o segundo foi feito somente depois que o primeiro foi recusado;
  • O tipo de convidado: primeiro foram pessoas nobres, depois os pobres, e aleijados, e mancos, e cegos;
  • Os termos do convite: o primeiro convite dizia: “Vinde”, mas na segunda vez o servo foi ordenado a trazer alguns;
  • O tratamento do convite: os primeiros recusaram, os segundos aceitaram.

É proveitoso contrastar esta parábola com a parábola semelhante registrada em Mt 22. Tanto lá quanto aqui encontramos a terceira de três parábolas contadas depois que os fariseus ficaram sem palavras. Compare a sequência dos acontecimentos:


Nas parábolas em si, há diversas diferenças importantes:


Parece que, em Mateus, a ênfase está naqueles que rejeitaram o convite e como o Senhor os trata (lemos dos homicidas sendo destruídos e das suas cidades sendo queimadas, e do homem sem veste nupcial sendo jogado fora), enquanto que aqui, a ênfase parece recair sobre aqueles que tomaram o lugar dos que rejeitaram (temos a descrição detalhada dos quatro tipos de pessoas convidadas na “segunda chamada”, e nenhuma menção da destruição dos primeiros). Ambas as parábolas falam de como Israel rejeitou o convite, e por isso os Gentios, indignos, foram convidados. Mateus destaca mais a rejeição de Israel, Lucas enfatiza o caráter indigno dos Gentios.

Comparando o ensino desta parábola com o que vimos na parte anterior, sobre o princípio que deve nos guiar em relação a convites, vemos como o Senhor também convida para a Sua ceia aqueles que não tem com que O recompensar.

Agora, repare como o polissíndeto usado pelo Senhor se encaixa perfeitamente neste contexto. O primeiro grupo de convidados, que representa Israel, é chamado somente de “convidados”. O segundo grupo, que representa os salvos desta dispensação, a Igreja, é descrito de quatro formas diferentes. Mas aqui o Senhor não omite as conjunções para nos ajudar a passar rapidamente por cima da lista; pelo contrário, Ele usa todas as conjunções possíveis, para nos forçar a caminhar lentamente por esta descrição triste, porém muito real, da nossa condição. Todos nós éramos, espiritualmente, pobres, e também aleijados (“mutilados”), e também mancos, e também cegos! Não são palavras genéricas que descrevem alguns de nós; todas elas se aplicam a todos nós antes da nossa conversão!

Meditando assim nos detalhes desta descrição, percebemos quanto ela combina com a realidade, e também quanto ela exalta o amor de Deus, que convidou para a Sua ceia pessoas pobres, e aleijadas, e mancas, e cegas! “Já sabeis a graça de nosso Senhor Jesus Cristo que, sendo rico, por amor de vós Se fez pobre; para que pela Sua pobreza enriquecêsseis” (II Co 8:9)

Descobrindo mais figuras

É impressionante ver como o Senhor mudou a forma de apresentar estas quatro classes de pessoas desprezadas, usando um polissíndeto poucos minutos depois de ter usado um assíndeto. As palavras não mudaram; os ouvintes eram os mesmos; a única coisa que mudou era o contexto. Na primeira ocasião o Senhor destaca as bênçãos daqueles que convidam os desprezados (não importa, realmente, que tipo de desprezado seja convidado), mas na segunda ocasião Ele enfatiza as características daqueles que Ele mesmo convidou. Na primeira lista não era necessário meditar nas qualidades específicas das pessoas (eram apenas alguns exemplos), por isso as conjunções são omitidas (assíndeto). Já na segunda lista, as qualidades específicas apresentadas são a razão principal da lista, por isso são usadas todas as conjunções possíveis. A sabedoria do Senhor ao falar, e a perfeição da inspiração do Espírito quando Lucas escreveu, nos impressionam.

Em terminar este pequeno artigo, gostaria de fazer um alerta para aqueles que desejam descobrir mais exemplos de assíndetos e polissíndetos no NT: é necessário verificar suas conclusões pelo texto grego do NT, pois as versões em português muitas vezes escondem estas figuras de linguagem (como foi destacado no caso de Lucas cap. 14).

Se você não sabe ler grego, não se desespere. Eu também não sei, mas há muitos recursos disponíveis hoje em dia para ajudar-nos. Um exemplo é o site Gospel Prime que apresenta o texto grego do NT. Com um pouco de trabalho (e muita cautela para não chegar a conclusões precipitadas!) é possível procurar pela conjunção kai (“e” em português) e ver se ela está presente ou não no texto que você estiver estudando.

Se algum leitor precisar de alguma outra informação, pode entrar em contato comigo nos comentários abaixo.


Leia o próximo artigo nesta série: Zeugma.


© W. J. Watterson

Monday, 5 May 2014

Correction re Neo-Babylonian chronology

Dear readers,

My family's moto, since the 13th century, has been “Veritas vincit omnia” (“Truth conquers all”). What really matters, at the end of the day, is not what I think or what I prefer, but what is right.

In this post I would like to acknowledge that I was wrong in relation to the chronology of the Neo-Babylonian period (626 to 539 B.C.). What I have presented in written and spoken ministry (mostly in Portuguese) was wrong, and even though it is a detail which will only interest a small portion of the small readership of this blog, it is a detail that, to those who mind, really matters.


The correction

Until a few days ago I accepted the chronology presented by Martin Anstey (The Romance of Bible Chronology. London, Marshal Brothers, 1913). Two key dates in that chronological scheme are: 504 B.C. for the destruction of Jerusalem, and 454 B.C. for the first year of Cirus. Archeological discoveries in the last hundred years have proved that Anstey was wrong, and that the received chronology of that period is correct. Thus, I am forced to admit that the dates above should be changed to 587 B.C. and 539 B.C.

As time allows, I hope to correct any errors in this blog which are linked to this time period.

The explanation

Well, why did I follow Anstey? And why have I changed my views?

Anstey's arguments were very attractive based on the facts known when he wrote his book (1913). At that time, the received chronology for the Neo-Babylonian period was almost exclusively based on the writings of Ptolemy. As the dates presented by Ptolemy did not agree with Anstey's interpretation of the Old Testament (especially the prophecy of the seventy weeks in Daniel chapter 9), Anstey affirmed (and I repeated) that the words of the Hebrew prophet were more reliable than the words of an egyptian astronomer. There were no other ancient documents with which to confirm Ptolemy's dates, and he lived many centuries after those kings reigned; it just didn't seem wise to follow blindly his chronological scheme.

Today, however, the facts are different, and I have only recently had access to these facts (I'm not a scholar, by any definition of the term!). There are thousands of documents from ancient Babylon that have been discovered in the last hundred years or so, and as they are translated and published (a slow process), Ptolemy's chronology is consistently being vindicated. Here are two examples:

  • The astronomical diary known as VAT 4956 describes the position of the moon and the five planets (known at that time) on various different occasions during Nebuchadnezzar's 37th year. About thirty of these descriptions are well enough preserved to allow modern astronomers to calculate when they could have occurred, and comparing the B.C. date of these descriptions with the date in the Babylonian calendar (all the descriptions in VAT 4956 have the hour, day and month of observation) it is possible to determine, with certainty, that Nebuchadnezzar's 37th year went from the Spring of 568 B.C. to the spring of 567 B.C. Thus the regular motion of the celestial bodies (and not simply ancient lists of kings) establishes the date of Nabuchadnezzar's reign.
  • Not only that, but thousands of comercial contracts for that period have been discovered (search for “House of Egibi”, or “Egibi family tablets” for an example). All these contracts are dated with the inscription: “Year XX of king XXXXXX”. Among these thousands of tablets discovered, there are tablets dated to every year of every king mentioned in Ptolemy's canon.

Based on these facts, it is not possible for me to continue believing what I believed up to a few days ago. I must admit that the received chronology for the Neo-Babylonian period is trustworthy, and we have no reason to doubt it's accuracy.

Allow me to point out, however, that the issue here was never between the Word of God and the word of Ptolemy. When the wise men of this world openly contradict the Word of God (as in the “Creation x Evolution” debate) I have no qualms about taking a firm stand for the Word of God. But the question here was not really between the Hebrew prophet and the Egyptian astronomer, but between my theories and Ptolemy's facts.

So, I hope that sets the record straight :-)

Pregações de R. E. Watterson

Na conferência em Pirassununga, 15/11/2007
Seguem abaixo links para algumas gravações de pregações feitas pelo meu pai, Ronald E. Watterson. Em Agosto de 1997, depois de muito tempo buscando um diagnóstico para os problemas que o incomodavam, foi confirmado que meu pai sofria do Mal de Parkinson. Ele ainda continuou pregando por mais de uma década depois deste diagnóstico, lutando contra o avanço desta doença cruel.

Meu pai faleceu em 30 de Maio de 2016, com 80 anos de idade. Desde que publiquei os links abaixo, tive acesso a outras mensagens dele — hoje, esta página contém links para 101 pregações. Agradeço aos irmãos José Carrasco e Ubiratã Torres, que forneceram diversas destas mensagens.

Que Deus seja glorificado, e Seu povo edificado, através destas pregações.

Atualização em 19/08/2019 — Devido a configurações de privacidade da Microsoft, os links abaixo estão com problema. Temporariamente, acesse a pasta com todas as pregações neste link.


A vinda do Senhor

Estudo ministrado em Ituiutaba em 1974.

Estudos em Apocalipse

Uma série de oito estudos sobre o livro de Apocalipse, ministrados na Vl Beatriz (SP) em 1985.
  • 1º Estudo: Apocalipse 1:1 a 11;
  • 2º Estudo: Apocalipse 1:12 a 20;
  • 3º Estudo: Apocalipse 1:17 a 20;
  • 4º Estudo: Apocalipse 2:1 a 7 (carta à igreja em Éfeso); 
  • 5º Estudo: Apocalipse 2:8 a 11 (carta à igreja em Esmirna);
  • 6º Estudo: Apocalipse 2:18 a 29 (carta à igreja em Tiatira);
  • 7º Estudo: Apocalipse 3:7 a 13 (carta à igreja em Filadelfia);
  • 8º Estudo: Apocalipse 3:14 a 22 (carta à igreja em Laodiceia). 

Estudos em Apocalipse cap. 4 em diante

Sequência dos estudos acima, no mesmo local (data desconhecida).

A Igreja e as igrejas

Série de cinco estudos ministrados em Tupi Paulista na década de 80.

Estudos em Filipenses

Série de estudos ministrados em São Bernardo do Campo em Dezembro de 1987.

A vinda de Cristo

Quatro estudos sobre este tema:

II Timóteo

Série de dez estudos na Escola Bíblia Samuel.

O Evangelho de Deus

Série de nove estudos ministrados na Escola Bíblia Samuel.

    Desenvolvimento e destino da igreja

    Série de três estudos ministrados em Sacramento. Inclui perguntas e respostas. Qualidade do áudio não é boa.

    Estudos em Filipenses

    Série de estudos ministrados em São Carlos. Data desconhecida.

    Primeiro Samuel

    Dois estudos no primeiro livro de Samuel, Out/Nov de 1995.

    Estudos em Atos

    Série de 6 estudos sobre o livro de Atos. Possivelmente foi na década de 90, em São Joaquim da Barra (Praça).

    Estudos em Gênesis

    Série de três estudos — conferência em Sacramento, Abril de 1996.

    Estudos sobre o Tabernáculo

    Estudos ministrados à igreja local em Pirassununga no ano de 2001.

    A preciosidade de Cristo

    Estudo ministrado na conferência em Pirassununga, 15 de Novembro de 2005.


    A direção do Espírito Santo

    Estudo ministrado na conferência em Pirassununga, 15 de Novembro de 2007. São apresentados os princípios bíblicos relacionados à direção do Espírito Santo na vida do cristão, e nas reuniões dos salvos.

    A supremacia de Cristo

    Estudo ministrado na conferência em Ibaté, 1º de Maio de 2009. Uma das últimas pregações dele, quando o Parkinson já incomodava bastante.

    As dispensações

    Um correto entendimento das dispensações é fundamental para compreender a Bíblia. Quanta confusão existe hoje entre o povo de Deus por não perceber a diferença entre Israel e a Igreja, e entre a Lei e a Graça. Os oito estudos abaixo foram pregados para a igreja no bairro Tupi, em Belo Horizonte (não sei qual ano).

    Relacionamentos

    Série de quatro estudos sobre os relacionamentos entre salvos. Pirassununga, SP.

    Outros

      Pregações do Evangelho


      © 2018 W. J. Watterson

      Wednesday, 30 April 2014

      Correção sobre a cronologia neobabilônica

      Prezados irmãos,

      O lema da família Watterson, desde o século XIII, é “Veritas vincit omnia” (“A verdade vence sempre”). O que importa mesmo, no final das contas, não é o que eu penso ou prefiro, mas sim a verdade. Sendo assim, devemos estar sempre prontos a rever nossas convicções, e corrigi-las sempre que necessário.

      Neste post, desejo reconhecer que eu estava errado em relação àquilo que tenho afirmado (por escrito e do púlpito) sobre a cronologia do período neobabilônico. É um detalhe que só vai interessar um grupo muito pequeno da audiência (muito pequena) deste blog; mas um detalhe que, para quem se interessa pelo assunto, é importante. Entendendo que eu posso ter influenciado alguém a crer em algo que considero errado, é minha responsabilidade tentar corrigir este erro.

      Primeiro, apresento a correção, resumidamente; depois, para quem estiver interessado, uma explicação um pouco mais detalhada.

      Correção

      Até poucos dias atrás eu aceitava a cronologia do período neobabilônico exposta por Martin Anstey (The Romance of Bible Chronology. London, Marshal Brothers, 1913). Duas datas-chave desta cronologia são:
      • Destruição de Jerusalém — 504 a.C.
      • Primeiro ano de Ciro — 454 a.C.
      Descobertas arqueológicas no último século, porém, provaram que Anstey estava errado, e que a cronologia recebida (deste período) estava certa. Sendo assim, tenho que reconhecer que as datas citadas acima deveriam ser modificadas da seguinte forma:
      • Destruição de Jerusalém — 586 a.C.
      • Primeiro ano de Ciro — 539 a.C.
      Conforme o tempo permitir, pretendo examinar este blog e corrigir qualquer data relacionada a este período, baseado nestes dados.

      Explicação

      Por que eu seguia Anstey? E por que mudei de opinião?

      Os argumentos apresentados por Anstey eram muito coerentes diante dos fatos conhecidos na época em que o livro dele foi escrito (1913). Naquela época, a cronologia secular do período em questão era baseada nos escritos de Ptolemy (ou Ptolomeu), principalmente numa lista de reis da Babilônia e Persa (o Cânon Real) preparada muitos séculos depois dos fatos. Como os dados apresentados por Ptolemy não combinavam com a forma como Anstey interpretava algumas profecias do Velho Testamento (principalmente a profecia das setenta semanas de Daniel cap. 9), Anstey afirmou (e eu repeti) que a palavra do profeta inspirado era mais confiável do que a palavra dum astrônomo egípcio. Não haviam outras fontes daquele período que poderiam confirmar os dados de Ptolemy, ele não era contemporâneo dos reis que descrevia, então não parecia sábio seguir cegamente um aparato cronológico escrito por um astrônomo que viveu tanto tempo depois dos fatos em questão.

      Hoje em dia, porém, a realidade é outra. Milhares de documentos da Babilônia antiga foram descobertos no século XIX e XX, e conforme vão sendo traduzidos e publicados (um processo lento) vai se percebendo que os dados cronológicos apresentados por Ptolemy são altamente confiáveis. Eis alguns exemplos:
      • Há um “diário astronômico” conhecido como VAT 4956 que descreve, em diversas ocasiões diferentes, a posição da Lua e dos cinco planetas conhecidos naquela época. Cerca de trinta destas descrições estão bem preservadas, e são datadas no diário (é dada a hora da observação, o dia, o mês, e o ano: todas as observações são do início do 37º ano ao início do 38º ano de Nabucodonosor). Com os conhecimentos astronômicos que temos hoje em dia, a posição da Lua e dos planetas em qualquer data pode ser facilmente calculada. Astrônomos afirmam que, contando para trás a partir dos dias atuais, as posições relativas ocupadas pela Lua e pelos planetas conforme descritos no diário aconteceram no ano de 568/567 a.C. (da primavera de 568 à primavera de 567). Assim fica estabelecido, pelo curso dos corpos celestes (e não simplesmente por tabelas cronológicas de antigos), que o 37º ano de Nabucodonosor começou em 568 a.C.
      • Além disto, milhares de contratos comerciais daquela época foram descobertos nos últimos anos (da firma conhecida como “Egibi e filhos”, por exemplo). Estes contratos são todos datados, trazendo a inscrição: “ano XX do rei XXXXX”. Nestes milhares de contratos descobertos existe menção feita a todos os anos de todos os reis mencionados na lista dos reis de Ptolemy (por exemplo, se Ptolemy afirma que um determinado rei reinou durante vinte anos, existem contratos datados do 1º ano, outros do 2º ano, e assim sucessivamente, até ao 20º ano deste rei). Todos estes milhares de contratos concordam perfeitamente com a lista de Ptolemy.
      Diante de tais fatos, não é coerente afirmar mais que a cronologia recebida do período neobabilônico esta errada; é a interpretação de Anstey (e, por consequência, a minha), que estava errada.

      Gostaria de ressaltar que trata-se de rejeitar uma interpretação humana, não as palavras inspiradas de Deus. Nunca terei vergonha de discordar das interpretações dos homens (não importa quão sábios sejam estes homens) quando estas interpretações discordarem da Palavra de Deus. Um bom exemplo disto é a teoria da evolução; os sábios deste mundo interpretam o registro dos fósseis como sendo prova de que tudo veio do nada, enquanto que a Bíblia afirma que Deus criou tudo. Acredito no que Deus diz na Sua Palavra, e prefiro ver os fósseis como o registro de transformações cataclísmicas controladas por Deus.

      Como escrevi acima, nunca terei vergonha de discordar das interpretações dos homens quando eles discordarem da Palavra de Deus, mas não posso defender uma interpretação minha quando ela contradiz fatos históricos que não podem ser negados.

      Fica o registro, portanto, da correção, acompanhada da oração para que Deus nos ajuda mais e mais a compreender a Sua Palavra e a Sua vontade.

      © W. J. Watterson

      Wednesday, 16 April 2014

      Nove figuras das igrejas locais

      O Novo Testamento usa diversas figuras diferentes para ilustrar o que é, e como deve funcionar, uma igreja local. Uma forma de organizar estas figuras, facilitando a compreensão das diferenças entre elas, é lembrar de como o VT enfatizou a ideia de Deus habitando com o Seu povo no Tabernáculo e no Templo, e pensar na igreja local principalmente em termos de uma habitação divina hoje.



      Pensando desta forma, encontraremos no NT três figuras de uma igreja local que tem em comum esta ideia de um prédio construído (ou em fase de construção):

      • Edifício (I Co 3:9) — é enfatizado o ato de construir, e o cuidado que devemos ter nesta ocupação;
      • Templo (I Co 3:16) — é destacado o caráter duma igreja local, que é santa aos olhos de Deus, mesmo que seja desprezada pelo mundo;
      • Casa (I Tm 3:15) — aqui é destacado o comportamento que se espera dos salvos na casa de Deus. 

      Além de pensar no prédio todo, podemos pensar nos componentes individuais que formam um prédio — os membros que compõe uma igreja local, que Pedro chama de “pedras vivas”. Se prédios na antiguidade eram edificados com pedras, a habitação de Deus hoje é edificada com pedras vivas — pessoas salvas pela graça de Deus. Encontraremos mais três figuras no NT que destacam características do povo que compõe uma igreja (estas três figuras são as únicas que usam seres vivos para representar as igrejas locais):

      • Rebanho (At 20:28) — a ovelha é uma ilustração adequada da fragilidade e fraqueza dos membros duma igreja local;
      • Corpo (I Co cap. 12) — o corpo, com sua multiplicidade de membros, todos trabalhando para o bem comum, nos lembra da função que cada membro de uma igreja local tem;
      • Noiva (II Co 11:2) — assim como uma “virgem pura” é fiel ao seu futuro marido, assim os salvos devem ser fiéis ao seu Senhor.

      Um prédio, porém, além de ser construído com pedras (ou algum outro elemento), também é construído com um propósito. Ninguém se dá ao trabalho de buscar pedras e edificá-las sem uma razão ou necessidade. Assim, encontraremos mais três figuras das igrejas no NT que nos falam do que Deus espera das Suas igrejas:

      • Lavoura (I Co 3:9) — o contexto mostra que, assim como uma lavoura produz fruto, assim uma igreja local deve desenvolver, produzindo fruto para Deus;
      • Coluna e baluarte (I Tm 3:15) — cada igreja local deve estar em-penhada na defesa da verdade apresentada na Palavra de Deus;
      • Candeeiro (Ap 1:12) — assim como João, ao ver os sete candeeiros, teve seu olhar atraído a Cristo no centro, assim as igrejas locais não existem para atrair atenção a si mesmas, mas para direcionar os homens a Cristo, nossa verdadeira atração e centro.

      A tabela abaixo sintetiza os parágrafos acima:




      © W. J. Watterson

      Tuesday, 8 April 2014

      Figuras de linguagem na Bíblia (introdução)

      Introdução

      Creio que a Bíblia, na sua totalidade, é a Palavra inspirada de Deus; “… homens santos de Deus falaram inspirados pelo Espírito Santo” (II Pe 1:21). Creio que as verdades contidas neste livro são de origem divina, mas também creio que as palavras e expressões usadas para transmitir estas verdades foram igualmente escolhidas por Deus, uma por uma. Não podemos valorizar a mensagem enquanto desprezamos o meio que Deus usou para transmitir esta mensagem.

      Quando lemos a Bíblia prestando atenção não só nas verdades que ela ensina, mas também na sua gramática, percebemos que o Espírito Santo fez uso frequente e repetido de figuras de linguagem em todos os livros da Bíblia. Por que Ele o fez? O que podemos aprender com isto? Sugerir respostas a estas perguntas é o objetivo deste estudo.

      Comecemos, porém, definindo a expressão “figura de linguagem”.

      Definindo o termo

      Para que possamos nos comunicar de forma eficaz é necessário seguir certas leis e regras — as palavras que usamos precisam ter um significado estabelecido, e a forma como unimos estas palavras para formar frases precisa também seguir uma estrutura reconhecida. Raramente paramos para pensar nisto ao falar ou escrever, mas sabemos que precisa ser assim. Se cada um usasse palavras com o significado que quisesse, e se as palavras pudessem ser misturadas numa frase sem qualquer preocupação com sua ordem e com a relação entre elas, seria um verdadeiro caos — nossa comunicação traria confusão ao invés de compreensão! Para evitar este caos existem as regras de linguagem, e toda comunicação coerente e compreensível segue estas regras (conscientemente ou não).

      O estudo e o tratado destas regras é responsabilidade da gramática; porém a própria gramática conhece, e aceita, o desvio consciente destas regras de linguagem em determinadas circunstâncias, com o objetivo de chamar atenção ao que está sendo dito. Este desvio da norma padrão é o que chamamos de “figura de linguagem” (“figura” no sentido de “forma”, não no sentido de “ilustração”). É importante enfatizar que “figura de linguagem” não é simplesmente uma ilustração, algo inferior à realidade, mas sim uma forma diferente de escrever (que pode até ser uma forma figurada, mas não necessariamente) que realça a realidade; ou o ato de desviar-se da norma padrão desejando alcançar uma maior expressividade (“Forma de expressão que foge da norma rigorosa, apresentando alterações fonéticas, morfológicas ou sintáticas … que empresta ao pensamento mais energia, mais vivacidade, e/ou confere à frase mais beleza e graça”, Aurélio).

      Pelas definições formais acima, percebemos que as figuras de linguagem servem para chamar atenção ao que está sendo transmitido. Bullinger (veja bibliografia abaixo) usa uma ilustração muito interessante para realçar a importância das figuras de linguagem. Numa viagem longa de trem, ninguém presta muita atenção enquanto tudo flui naturalmente; mas assim que a velocidade do trem diminui, ou algo inesperado acontece, todo mundo está alerta. Assim com um texto, diz Bullinger; enquanto tudo segue as leis normais que regem a gramática, seguimos nossa leitura tranquilos, sem preocupações ou sobressaltos. Mas quando notamos um desvio das leis conhecidas; quando algo é apresentado de uma forma que não é normal, somos levados a parar e perguntar: “Por que este desvio? Qual a intenção do autor ao empregar esta figura aqui?”

      É importante repetir que as figuras de linguagem pertencem também ao campo da gramática, e portanto estão sujeitas a leis e regras como qualquer outra parte de uma língua. Não são uma espécie de Faroeste gramatical, onde não há lei e tudo vale. Ninguém pode escrever algo que foge às leis da gramática e simplesmente dizer: “É figura de linguagem!” Não podemos confundir “vícios de linguagem” (desvios defeituosos da norma padrão, que só confundem) com “figura de linguagem” (um desvio consciente da norma padrão, que realça).

      Resumindo: figuras de linguagem são desvios conscientes da norma padrão que tem por finalidade realçar a beleza ou expressividade de um texto, e que também seguem as regras de linguagem.

      Defendendo o tema

      Nosso objetivo neste estudo, porém, não é estudar gramática, mas sim apreciar um pouco mais das belezas e perfeições da Bíblia. Tendo feito este pequeno desvio pelos campos da gramática e olhado rapidamente para a definição de “figura de linguagem”, precisamos ocupar pelo menos um pouco de espaço para defender este estudo do uso de figuras de linguagem na Bíblia, pois alguns afirmam que tal estudo, além de desnecessário, é desprezível. Desnecessário, dizem, porque não acrescenta nada ao conhecimento que temos de Deus; desprezível, porque aumenta muito a opinião que temos de nós mesmos. Alguns descreveriam esta ocupação com as palavras dirigidas aos ascéticos: “As quais têm, na verdade, alguma aparência de sabedoria … mas não são de valor algum senão para a satisfação da carne” (Cl 2:23).

      Em primeiro lugar, pensemos na necessidade deste estudo. Para conhecer a Bíblia é necessário que eu saiba a diferença entre metonímia e sinédoque? Se eu me tornar um doutor em retórica e souber definir e distinguir todas as figuras de linguagem, terei um conhecimento mais elevado da vontade de Deus para a minha vida?

      A resposta a estas perguntas é um sonoro “Não!” A Bíblia não foi escrita para os eruditos e retóricos, mas para “os pequeninos” (veja Mt 11:25). A mensagem da Bíblia não está em código, necessitando de sabedoria e inteligência humana para decifrá-la. Pelo contrário, a própria Bíblia afirma que sua mensagem é conhecida pelo Espírito Santo, e não pela inteligência humana (I Co 3:11-16). O caminho principal para compreender a mensagem das Escrituras não é estudar gramática e retórica, mas sim permitir que o Espírito Santo nos revele a Sua própria Palavra. “O segredo do Senhor é com aqueles que O temem” (Sl 25:14), diz o Salmista, não com aqueles que são mestres em gramática! O que Deus quer transmitir na Sua Palavra é de fácil compreensão, desde que haja no leitor um espírito submisso e obediente.

      "Ora, então por que perder tempo com este assunto?" pergunta alguém. Como resposta, permita-me apresentar o assunto de outro ponto de vista. Deus usou figuras de linguagem na Sua Palavra? A resposta é muito clara: “Sim — e milhares delas!” Diante deste fato, não devemos perguntar: “Por que preciso prestar atenção nestas figuras?”, mas sim: “Por que irei negligenciar estas figuras?” Se Deus, na Sua infinita sabedoria, achou por bem usar figuras de linguagem em todos os livros das Escrituras, quem sou eu para dizer que este detalhe da Bíblia pode ser desprezado? Como é importante estudar cada palavra, cada detalhe das Sagradas Escrituras, reconhecendo que tudo é inspirado por Deus. Como disse Jeremias: “Achando-se as Tuas palavras, logo as comi, e a Tua Palavra foi para mim o gozo e a alegria do meu coração” (Jr 15:16). O caminho para apreciar a Bíblia como um todo (“a Tua Palavra”) é buscar, achar e digerir cada pequena parte que compõe este Livro (“as Tuas palavras”).

      Precisamos encarar o fato de que Deus apresenta Suas verdades, que são sublimes na sua simplicidade, numa forma extremamente atraente e bela. Todas as páginas da Bíblia registram diversas figuras de linguagem, e o estudo deste assunto certamente é importante e necessário. Não porque vai nos revelar alguma doutrina nova, ou algum mistério que os “indoutos” não conseguem compreender — mas porque vai nos levar a apreciar melhor a perfeição deste livro.

      Há também outro detalhe; precisamos lembrar que a Bíblia é o único texto perfeito na face da Terra! Qualquer outra obra literária, por mais que tenha alcançado status de “obra-prima”, por mais que seu autor seja reconhecido como um gênio literário, será sempre uma obra produzida por um homem de conhecimento e capacidades limitadas. Somente a Bíblia foi escrita por um Autor onisciente e onipotente. É verdade que o estilo que predomina na Bíblia é a simplicidade, e há obras humanas que são mais rebuscadas e gramaticalmente enfeitadas do que a Bíblia (como um todo) — mas isto é porque Deus queria instruir, e não impressionar; Ele escrevia para todos nós, e não somente para um pequeno grupo de intelectuais e eruditos. O que estou argumentando não é que a Bíblia é a obra literária mais rebuscada que existe, mas sim que é a única em toda a face da Terra onde cada palavra (literalmente!) tem um significado e importância; é a única obra perfeita.

      Esta perfeição da Bíblia coloca mais importância sobre as figuras de linguagem que ela usa. Como disse Bullinger:
      O homem pode usar figuras em ignorância, sem nenhuma finalidade específica. Mas quando o Espírito Santo usa palavras humanas e aplica uma figura (ou forma peculiar), é com uma finalidade especial, e esta finalidade deve ser observada e tratada com a devida importância.
      Em outras palavras, autores humanos podem usar uma figura de linguagem sem perceber que usaram, ou somente porque ouviram outro falar desta forma. Podem, também, usar uma figura que não seria a mais indicada naquele contexto. Mas quando o Espírito Santo usa uma figura de linguagem, podemos ter certeza absoluta que Ele o fez com perfeição, e que há tesouros de conhecimento para serem revelados ali. Nunca será perda de tempo prestar atenção aos pequenos detalhes com os quais o Espírito Santo ornamentou a Bíblia.

      Distinguindo os tipos

      As figuras de linguagem são tão numerosas quanto antigas. Os gregos antigos deram nome a mais de duzentas destas figuras, mas o verdadeiro desafio está em classificá-las de uma forma útil. Uma pesquisa sobre este assunto mostrará diversas formas diferentes de se dividir e classificar as figuras de linguagem, cada uma tendo suas vantagens e desvantagens.

      Devido às minhas limitações neste assunto, não vou me atrever a resolver a questão. Mas como precisamos de algum tipo de classificação para não nos perdermos em meio a tantas figuras, vou seguir o esquema proposto por Bullinger, que divide as figuras de linguagem em três grupos:

      1. Figuras que são caracterizadas por omissão (de palavras ou de significado — figuras elípticas);
      2. Figuras que são caracterizadas por acréscimo (pela repetição de palavras ou de significados — figuras pleonásticas);
      3. Figuras que são caracterizadas por alteração (no uso, na ordem, ou na aplicação de palavras).

      Na sua monumental obra, Bullinger usou mais de mil páginas para nomear, classificar, descrever e ilustrar (com passagens bíblicas) duzentas e dezessete figuras de linguagem encontradas na Bíblia. Minha intenção neste estudo é bem mais limitada: pretendo somente destacar algumas destas figuras, como uma pequena introdução ao assunto. Há muito ainda que preciso aprender, e há muito ainda para ser explorado nas Escrituras. Mas se esta introdução servir para despertar em alguém o interesse para aprofundar-se neste estudo, e se criar em todos nós o desejo de prestarmos mais atenção aos pequenos detalhes da Bíblia, será motivo de gratidão a Deus.

      Em próximos artigos, se Deus permitir, destacarei algumas das figuras de linguagem mais comuns na Bíblia.

      Leia o próximo artigo nesta série: Assíndeto e Polissíndeto.

      Bibliografia resumida:
      BULLINGER, E. W. Figures of Speech used in the Bible Explained and Illustrated. Michigan, Baker Book House, 23rd printing, 2003.


      © W. J. Watterson

      Monday, 31 March 2014

      A desilusão de Simeão

      Ouvi uma pregação hoje à noite sobre a mulher pega em adultério em João cap. 8, e lembrei-me deste texto escrito na minha mocidade (poucos anos atrás :-)

      A desilusão de Simeão


      Simeão, desde pequeno, se destacara no meio dos seus colegas, não apenas pela sua saúde e inteligência, mas também pela sua devoção a Jeová, o Deus de seus pais. Bem educado e esforçado, ele cumpria à risca as determinações da Lei de Moisés, estudava diligentemente as Escrituras, e sonhava com o dia em que seria reconhecido como um mestre da Lei.

      Naquela manhã tranquila em Jerusalém, caminhando em direção ao Templo, seu coração parecia flutuar à sua frente, e sua consciência, tranquila, estampava um sorriso contagioso em sua face. Ele seguia alheio a tudo ao seu redor, com mil e um sonhos alegres ocupando sua mente de adolescente.

      Repentinamente, porém, seus sonhos foram interrompidos. Um grupo de homens, escribas e fariseus, desceram a rua correndo e entraram numa casa logo à sua frente. Simeão parou, espantado, ouvindo a gritaria que se iniciara dentro da casa, enquanto pessoas corriam para todos os lados. Poucos minutos depois, com uma mulher segura pelos braços, a multidão saiu da casa, e tomou a direção do Templo.

      Curioso e interessado, Simeão correu ao lado de Judas, seu tio, que fazia parte da multidão enraivecida. “Que confusão é esta, tio Judas?”

      Sem parar de correr, seu tio respondeu: “Esta mulher foi apanhada em adultério, e vamos levá-la para Jesus, o nazareno. Vai ser uma forma de pegá-lo em contradição”.

      “Mas como?”, perguntou Simeão.

      “É simples”, respondeu seu tio; “Se ele disser que ela deve ser apedrejada, como manda a Lei, então estará desobedecendo à lei romana, e estará negando sua pregação, que fala tanto de amor e perdão. Mas se ele disser que ela deve ser perdoada, então ele estará indo contra a lei de Moisés! Entendeu? Ele não tem saída!”

      “Puxa”, pensou Simeão; “É mesmo; ele não tem saída! Essa eu quero ver!” E o garoto se uniu à multidão, que crescia cada vez mais. Apesar de pequeno, ele já havia aprendido a odiar a Jesus, que se dizia Filho de Deus. Aos olhos de Simeão e seu povo, isto era blasfêmia, e ele faria qualquer coisa para acabar com o Carpinteiro de Nazaré que ousava dizer que era Deus!

      Poucos minutos depois, chegaram ao Templo. Simeão foi logo se enfiando no meio do povo, querendo ver tudo de perto. Empurrando daqui e dali, conseguiu chegar ao centro da roda. Lá estava a mulher, em pé no meio de todos, cabisbaixa; um pouco ao lado ele viu Jesus, que estava inclinado, calmamente escrevendo com o dedo na terra.

      “Ele não vai dizer nada?”, Simeão sussurrou ao homem que estava ao seu lado.

      “Não sei. Os escribas já lhe apresentaram o problema, mas ele começou a escrever na terra e não disse nada!”

      Naquele momento Jeosafá, o mestre de Simeão, levantou a voz e disse, sem conseguir disfarçar seu desprezo e ironia: “Mestre, não respondes à nossa pergunta? Devemos apedrejá-la?”

      Houve uma pequena pausa; todos fitavam Jesus, alguns ansiosos, outros com ar de vitória. Finalmente Ele se endireitou. Olhou primeiro para Jeosafá, depois para a mulher, e então permitiu que Seu olhar passasse pela multidão ao Seu redor. Simeão ficou surpreso ao ver, no olhar de Jesus, um brilho de ternura, e algo mais; parecia tristeza. Jesus então falou: “Aquele dentre vós que estiver sem pecado, atire a primeira pedra contra ela”.

      O silêncio foi instantâneo. “Ele concordou em apedrejá-la”, pensou o garoto. “Agora podemos acusá-lo perante os romanos, e ele será preso!” E ele olhou em redor, esperando ver alegria e satisfação no rosto daqueles homens.

      Mas não. O que ele viu deixou-o ainda mais surpreso. Todos olhavam para o chão, aparentemente envergonhados, num silêncio constrangedor. “Mas o que está acontecendo?” pensou ele.

      Depois de vários minutos, o velho Levi, lá do outro lado do círculo de pessoas, moveu-se, caminhando lentamente em direção à mulher. “É agora!” pensou Simeão, quase gritando de euforia.

      Mas o velho escriba não ergueu os olhos; foi passando, atravessou o círculo que haviam feito em torno de Jesus, e começou a retirar-se. Simeão olhava, atônito, enquanto os velhos mestres, um após o outro, seguiam seu exemplo, e afastavam-se. Até Jeosafá se levantou para ir embora!

      “Não é possível!”, Simeão pensou. Com o coração ardendo, ele saiu correndo atrás de seu mestre, puxou-o pelo braço e quase gritou: “Mestre, o que vocês estão fazendo?” Jeosafá olhou para o rosto coberto de lágrimas do garoto, mas não conseguiu dizer nada. Desviando o olhar, colocou a mão no ombro de Simeão, depois virou-se e partiu.

      Simeão, porém, permaneceu imóvel, como que grudado no chão. Pois naquele instante em que os olhos de Jeosafá haviam se encontrado com os seus, Simeão havia visto, claramente, a vergonha que Jeosafá estava sentindo. E como se recebesse um golpe, ele entendeu; todos aqueles mestres, escribas e fariseus, todos eles estavam se retirando, do mais velho ao mais moço, porque todos eram pecadores. Ninguém tinha coragem de atirar a primeira pedra! O mundo de Simeão estava desabando. Ele virou-se novamente para onde Jesus estava, mas não havia mais ninguém ali com Ele. Até a mulher estava indo embora. Mas como era diferente o rosto dela! Se em Jeosafá havia tristeza e vergonha, o rosto dela até brilhava, repleto de paz e alegria! “Mas ela é pecadora!” pensou Simeão, a boca seca, os joelhos tremendo, numa mistura de raiva e confusão; “Ela é a pecadora! Isto não é certo. Ela é a pecadora!

      Foi quando ele viu que Jesus se levantava, olhando em sua direção; e o garoto lembrou-se das palavras do Mestre dos mestres: “Aquele dentre vós que estiver sem pecado, atire a primeira pedra contra ela”. Neste instante ele viu o seu pecado; não apenas o pecado daquela mulher, mas o pecado de Simeão! Toda sua preocupação em guardar a Lei, seu orgulho de ser judeu, nada disso importava mais. Sua consciência, finalmente acordada, não parava de lembrá-lo dos muitos pecados que ele cometera. Ele era zeloso da Lei, temente a Deus, educado e obediente — mas agora ele sabia também que era pecador.

      Era o fim; sem conseguir olhar nos olhos dAquele que ele viera acusar, Simeão afastou-se, envergonhado e desolado.

      *******

      Prezado leitor, você não quer ser honesto consigo mesmo, e reconhecer, como Simeão, que você também é pecador? Não preocupe-se com os outros — é o teu pecado que importa. Você teria coragem de atirar a primeira pedra? Nem eu, nem você, nem Simeão, nem ninguém — somos todos pecadores. Diz a Bíblia: “Não há diferença, porque todos pecaram” (Rom. 3:23).

      Mas uma vez reconhecendo este fato, não se retire como Simeão — venha ao Senhor Jesus. A Bíblia diz Ele veio ao mundo exatamente para buscar pecadores como eu e você: “o Filho do Homem veio buscar e salvar o perdido” (Lucas 19:10). Ele morreu na cruz em nosso lugar, e o Seu sangue “nos purifica de todo pecado” (I João 1:7). Religião pode ter proveito, mas não perdoa pecados; boas obras são desejáveis, mas não perdoam pecados; é somente o Filho do Homem que “tem poder para perdoar pecados” (Marcos 2:10). A Bíblia afirma que quem crê nEle tem a vida eterna, e recebe o perdão dos pecados (João 3:36; Atos 10:43).

      Você é pecador, mas Cristo pode te salvar do pecado e da condenação eterna.



      © W. J. Watterson

      Thursday, 20 March 2014

      Diferenças entre as listas de Esdras e Neemias

      Apresento abaixo uma tabela comparativa das listas dos filhos de Israel que voltaram do Cativeiro na Babilônia. Há duas listas nas Escrituras; uma em Esdras cap. 2, a outra em Neemias cap. 7, e há duas coisas sobre estas listas que devem ser mencionadas:


      O total não combina com os detalhes

      No final de cada lista é dado o número total dos que voltaram do cativeiro, e este número é idêntico nas duas listas: 42.360. O problema é que a soma das famílias mencionadas nas listas é bem menor do que 42.360: na lista de Esdras há somente 29.818 pessoas mencionadas, e na de Neemias, 31.089. Restam, portanto, mais de dez mil pessoas (12.542 em Esdras, e 11.271 em Neemias). Há duas possíveis explicações para esta diferença:

      • A literatura judaica antiga (Seder Olam Rabah, c. 29, p. 86) afirma que este excesso era de Israelitas das dez tribos, aquelas que foram levadas ao cativeiro na Assíria, e não na Babilônia. Os que voltaram de Judá e Benjamin foram identificados pelas suas famílias, mas alguns das outras tribos ouviram do retorno de seus irmãos do Exílio, e se juntaram a eles; estes não foram mencionados por nome.

      • Há uma diferença nas palavras usadas. O início das listas usa a palavra enowsh (“homem”), enquanto que o total é relacionado à palavra qahal (“multidão”): “O número dos homens do povo de Israel … Toda esta congregação junta …” (Ed 2:2, 64; Nm 7:7, 66). É possível, portanto, que apenas os homens foram listados por nomes, e as mulheres [Nota 1] e crianças constituem o número excedente.

      Qualquer uma das duas sugestões é possível; a primeira me parece mais provável.

      Os detalhes não combinam entre si

      Esdras e Neemias apresentam números diferentes para várias das famílias. Na tabela abaixo, todas as linhas destacadas com a cor amarela contém alguma diferença entre os números fornecidos em Esdras e os de Neemias (são vinte e oito registros iguais, e vinte diferentes). Antes de pensar nas possíveis razões para este fato, quero destacar que este fato confirma a autenticidade e a veracidade das duas listas:

      • Confirma sua autenticidade — Alguns sugerem que as diferenças existem porque as duas listas são fabricadas, mas as diferenças entre elas realmente provam o contrário. Lembrando que Esdras e Neemias eram um só livro até o século III, não é coerente imaginar que algum judeu teria o trabalho de fabricar duas cópias de uma lista falsa, e não se preocupar em fazer com que fossem idênticas. Pelo que conhecemos da natureza humana, sabemos que isto é impossível. Alguém trabalhando com pressa poderia cometer um ou outro deslize, mas mesmo um falsificador medíocre não permitiria tantos erros (vinte erros num total de quarenta e oito registros!) em duas listas que ele afirma serem iguais. As diferenças entre as duas listas provam que elas são documentos diferentes e autênticos, e não uma falsificação feita por um enganador.

      • Confirma sua veracidade — Alguns afirmam que estas diferenças só podem ser o resultado de erros de transcrição enquanto a Bíblia era copiada através dos séculos, e que não podemos saber quais eram os números originais. Dizem que as duas listas são falsas — não porque foram falsificadas, como tratamos acima, mas porque contém falhas. Se pensarmos um pouco nesta sugestão, porém, veremos que as diferenças entre as listas são numerosas demais, e variadas demais, para que isto seja possível. Sabemos que, ao copiar uma lista de nomes e números, é muito fácil cometer um erro. Mesmo com todo o cuidado que os judeus tinham ao copiar as Escrituras do Velho Testamento (uma pesquisa sobre este assunto é muito interessante), temos que admitir que, se fosse apenas uma obra humana, erros seriam inevitáveis. Mas as diferenças entre estas duas listas são muitas (mais de 40% dos números contém variações), e são extremamente variadas. Quando há variações devido a erros de copistas, geralmente se entende por que o erro aconteceu (troca de um dígito, ou algo semelhante), mas as variações nestas duas listas não seguem nenhum padrão que possa ser explicado pela negligência dos copistas.[Nota 2]

      Assim, as diferenças entre as duas listas provam que o que temos hoje em nossas Bíblias é o que Esdras e Neemias escreveram tantos séculos atrás. Se os judeus quisessem ter nos enganado fabricando duas listas, teriam feito esta falsificação com mais cuidado; se os judeus tivessem sido omissos ao copiar as Escrituras e permitido erros de copistas, as diferenças entre as listas não seriam tantas, nem tão variadas.

      As considerações acima confirmam que as duas listas devem ser tratadas como livres de falsificação e livres de falhas, mas não explicam as diferenças entre as duas listas. Se o que temos hoje em Esdras 2 e em Neemias 7 é exatamente o que eles escreveram, preservado para nós pelo poder de Deus, porque a lista em Neemias é tão diferente da lista em Esdras? Há três sugestões que já foram apresentadas:

      • Muitos autores sugerem que a diferença é devido à época em que as duas listas foram feitas; uma lista poderia ter sido feita quando o povo se preparava para sair da Babilônia, indicando todos os que planejavam fazer a viagem; enquanto que outra poderia mencionar somente aqueles que efetivamente saíram da Babilônia e chegaram em Jerusalém, alguns meses depois[Nota 3]. Alguns talvez deram o seu nome quando souberam da possibilidade de voltar, mas depois desistiram; outros talvez resolveram ir somente na última hora. Diante de viagem tão longa, com perspectivas de aventura e perigo, bem pode ser que muitos mudariam de opinião na última hora.

      • Alguns sugerem que somente a lista de Esdras é a correta, e que Neemias encontrou uma cópia adulterada desta lista. Neemias diz: “Achei o livro da genealogia dos que subiram primeiro, e nele estava escrito o seguinte …” Sendo assim, o que Neemias escreveu no seu livro foi uma cópia fiel e verdadeira do documento que ele tinha em mãos, mas este documento estava corrompido. Quem sugere isto crê na inerrância das Escrituras, atribuindo a diferença entre as listas ao documento que Neemias cita. É um fato que a Bíblia registra coisas que outros disseram e escreveram e que não são verdadeiras,[Nota 4] mas acho difícil entender que isto aconteceu aqui, visto que Neemias e Esdras foram contemporâneos.

      • Alguns comentários (Davidson, JFB, TSK[Nota 5]) citam uma explicação dada por alguém chamado “Alting”. Este autor mostra que Esdras menciona 494 pessoas que Neemias não menciona[Nota 6], enquanto que Neemias menciona 1765 que não são mencionados em Esdras. Ora, se adicionarmos aos 29.818 de Esdras os 1.765 excedentes de Neemias, teremos 31.583. Se adicionarmos aos 31.089 de Neemias os 494 excedentes de Esdras, teremos 31.583 —exatamente os mesmos valores. Alting é citado por Davidson na sua obra, que por sua vez é citado por JFB, TSK, etc., como se este detalhe fosse a solução do problema. Confesso que é um detalhe interessante, mas infelizmente ele não prova absolutamente nada; é simplesmente uma característica de duas listas quaisquer de números.[Nota 7]

      A única desta três alternativas que me parece viável é a primeira. Não posso afirmar que é isto que aconteceu, mas consigo ver que é possível que isto tenha acontecido. Por outro lado, reconheço minha ignorância de todos os fatos, e bem pode ser que o Senhor tinha outras intenções em levar Esdras e Neemias a apresentar contagens diferentes em relação a esta multidão que voltou da Babilônia.

      Conclusão

      Minha intenção com este pequeno artigo não é explicar o porquê da diferença, mas somente:

      i) Tentar anotar todos os detalhes das diferenças entre as duas listas (pois a solução de um problema começa pelo entendimento do problema);

      ii) Tentar mostrar que existem explicações lógicas e possíveis para estas diferenças.

      Nenhum de nós conhece toda a verdade, e seria presunção fazer afirmações onde a Bíblia se mantém em silêncio. Mas a atitude do cristão diante da Palavra de Deus deveria ser uma de reverente fé naquilo que está escrito. Posso não entender tudo que leio; posso não saber explicar as aparentes contradições; mas creio que a Bíblia é a Palavra inspirada de Deus, e “digna de toda a aceitação”.




      Notas de rodapé

      Nota 1 — Alguns acham impossível a proporção de mulheres para homens neste caso (se o número excedente se refere apenas às mulheres, somente um em cada três homens seria casado; se incluirmos crianças nesta contagem, a proporção seria ainda menor). Realmente a proporção não é normal; mas se lembrarmos que muitos preferiram ficar na Babilônia do que enfrentar a longa e perigosa viagem de volta a uma terra deserta e abandonada, não seria difícil imaginar que haveria muito mais homens jovens e solteiros (com menos preocupações e impedimentos) dispostos a fazer esta primeira viagem de volta à terra prometida, enquanto que a maioria dos casados e com família teriam mais receio de enfrentar uma viagem destas.

      Nota 2 — Por exemplo, na primeira diferença entre as duas listas, Neemias fala de 123 pessoas a menos do que Esdras, enquanto que na segunda ele menciona 6 pessoas a mais. Trocar 2812 por 2818 (a segunda diferença na lista) é fácil de acontecer (basta um pequeno descuido para trocar o último “2” por um “8”, repetindo o dígito “8” que já apareceu no número), mas trocar 775 por 652 (a primeira troca) já é uma mudança que dificilmente poderia ser explicada por um mero descuido do copista. Ilustrei este detalhe usando os dígitos em português, ciente de que no hebraico as diferenças seriam outras; mas o princípio é o mesmo para todas as línguas: mudanças que são fruto de erros de copistas seguem um padrão que pode ser explicado por uma falha de atenção, mas mudanças tão variadas uma das outras, como as destas listas, precisam de outra explicação.

      Nota 3 — A viagem era longa — Esdras, por exemplo, demorou quatro meses (Ed 7:8-9).

      Nota 4 — Por exemplo, a serpente disse a Eva: “É certo que não morrerás”. A Bíblia contém este registro, não porque as palavras da serpente são a verdade, mas porque é verdade que a serpente disse estas palavra.

      Nota 5 — DAVIDSON, Samuel. Sacred Hermeneutics develped and applied. Edinburgh: Thomas Ckark, 1843, pág. 554. “JFB” refere-se ao comentário de Jamieson, Fausset e Brown, e “TSK” refere-se ao Treasure of Scripture Knowledge.

      Nota 6 — Demorei para conseguir entender isto, então explico aqui o que ele quis dizer; pode ajudar outra pessoa. Se compararmos a lista de Esdras com a de Neemias, e em todo registro em que Esdras é maior do que o correspondente registro em Neemias, anotarmos à parte quantas pessoas Esdras menciona à mais do que Neemias, veremos que a soma de todas estas anotações será igual a 494. Comparando Esdras com Neemias, teremos estes acréscimos em Esdras: os filhos de Ará, 123 a mais (775-652); os filhos de Zatu, 100 a mais (945-845); os homens de Betel e Ai, 100 a mais (223-123); os filhos de Magbis, 156 a mais (156-0); os filhos de Jericó, 4 a mais (725-721); os filhos dos porteiros, 1 a mais (139-138); os filhos de Dalaías, Tobias e Necoda, 10 a mais (652-642). Somando todos estes acréscimos, temos: 123+100+100+156+4+1+10=494. Para o segundo número (1765) fazemos a mesma coisa, mas agora somando todos os “excedentes” da lista de Neemias em relação à de Esdras.

      Nota 7 — Monte duas listas com cinco ou seis registros cada, e preencha-as com números aleatórios. O total da primeira lista acrescido de todos os excedentes da lista paralela, será sempre igual ao total da segunda lista acrescido de todos os excedentes da primeira.




      © W. J. Watterson

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